Como uma instituição universal desapareceu em menos de cem anos?
Crédito da imagem: Miltiadis Fragkidis / Unsplash
A história da escravidão é um tema que vem chamando a atenção de vários historiadores contemporâneos. O crescente fascínio que ele desperta atualmente é, em parte, consequência de uma dura realidade: com exceção dos últimos 200 anos, a escravidão esteve presente em quase todos os períodos históricos.
Nota do Cabeça Livre:
O dicionário Michaelis define “escravo” como “aquele que vive privado da liberdade, em absoluta sujeição a um senhor ao qual pertence como propriedade.” Um escravo, sendo uma propriedade, pode ser vendido, emprestado, alugado e até morto, conforme as vontades e/ou necessidades do seu senhor.
A escravidão é incompatível com a ética libertária, uma vez que viola a primeira propriedade privada que toda pessoa tem ao nascer, e deveria carregar consigo até morrer, que é a propriedade do próprio corpo.
Apesar disso, a escravidão esteve presente em várias sociedades, de formas diferentes, durante parte considerável da história da humanidade.
Na Suméria, a mais antiga civilização conhecida, a que inventou a escrita, a escravidão já era regulamentada no Código de Hamurábi, por volta de 1800 a.C. Na Grécia Antiga, em Atenas e em Esparta, prisioneiros de guerra eram feitos escravos, sendo que em Atenas também havia comércio de escravos. Na Roma Antiga, uma pessoa podia ser tornada escrava por dívida, se fosse prisioneira de guerra, por atos de pirataria ou por mau comportamento cívico. Havia escravidão entre povos indígenas na América pré-colombiana, como Maias e Astecas, e a escravidão era uma prática comum entre os africanos mesmo antes do envolvimento de árabes e europeus.
No Brasil, houve escravidão do período colonial até pouco antes do fim do Império, ou seja, do século XVI ao XIX. Foi marcada principalmente pela exploração da mão de obra de negros trazidos da África pelos colonizadores europeus. Os comerciantes de escravos vendiam os africanos como se fossem mercadorias, adquirindo-os de povos africanos que os haviam feito prisioneiros. Os escravos foram utilizados principalmente na agricultura – com destaque para a atividade açucareira – e na mineração. Foram, assim, essenciais para a manutenção da economia colonial. Alguns deles desempenhavam também vários tipos de serviços domésticos e/ou urbanos.
Hoje em dia, a escravidão é considerada crime no mundo todo, embora com alguma frequência ainda surjam denúncias de pessoas trabalhando em condições análogas à escravidão em diversos lugares. O último país a abolir a escravidão foi a Mauritânia, no noroeste da África, em 1981. Mas no final do século XIX muitos países já não usavam mais mão de obra escrava, incluindo o Brasil.
Então, a grande pergunta é: por que e como uma instituição universalmente adotada praticamente desapareceu em quase todo o mundo em menos de 100 anos?
Por muitos anos, a resposta foi a seguinte: a escravidão e o comércio de escravos eram aceitos como facetas da vida social até que, ao final do século XVIII, um movimento surgiu em prol de sua abolição, inicialmente na Grã-Bretanha, liderado por figuras como por William Wilberforce e Thomas Clarkson. Motivados por preocupações humanitárias, o movimento se espalhou da Inglaterra para outros países, obtendo diversas vitórias e culminando na abolição do comércio de escravos no Império Britânico em 1807; no seu fim nas Índias Ocidentais Britânicas em 1832 e finalmente sua extinção no Novo Mundo em 1882.
Nota do Cabeça Livre:
A abolição da escravidão no Brasil foi um processo que ocorreu aos poucos e teve início no século XIX, por pressão da Inglaterra. Uma lei de 1850, conhecida como Lei Eusébio de Queirós, proibiu o tráfico negreiro no Brasil. Uma lei de 1871, conhecida como Lei do Ventre Livre, determinou que todo filho de escrava nascido a partir de então já nasceria livre. A Lei dos Sexagenários, de 1885, concedeu liberdade aos escravos com idade igual ou superior a 60 anos. Por fim, a princesa Isabel assinou a Lei Áurea em 13 de maio de 1888, extinguindo em definitivo a escravidão no Brasil.
Uma figura de destaque desse período, talvez não tão lembrada quanto deveria, foi Luiz Gama, que foi feito escravo de forma ilegal (já que sua mãe era livre), mas conseguiu se libertar, era autodidata, estudou Direito e lutou nos tribunais, tendo conseguido a libertação de mais de 500 negros. Foi considerado um dos maiores abolicionistas do Brasil.
Essa visão do abolicionismo – como um movimento humanitário motivado por ideais elevados – foi duramente criticada na obra Capitalism and Slavery (“Capitalismo e Escravidão”, em uma tradução livre) escrita em 1944 por Eric Williams (que mais tarde veio a se tornar primeiro-ministro de Trindade e Tobago). Williams argumentou que a abolição da escravidão pouco tinha a ver com causas humanitárias. Tratava-se antes de uma consequência da aparição do capitalismo moderno, que tinha retirado a lucratividade do sistema escravocrata. Foi o autointeresse e não sentimentos humanitários que levaram as pessoas a abandonarem esse sistema. (Ele também argumentou que os lucros iniciais do comércio de escravos e as instituições que dele se originaram desempenharam um papel importante na Revolução Industrial inglesa; mas essa é uma questão separada, a qual não será tratada nesse artigo).
Essa visão tornou-se predominante por algum tempo, sobretudo porque apelava a ambos os lados do espectro político tradicional, embora por razões distintas. Defensores do capitalismo argumentavam que tal estudo mostrava como ele era incompatível com a escravidão por causa do simples autointeresse. Os críticos do capitalismo podiam usá-lo para mostrar como clamores em prol dos direitos humanos e da liberdade eram mera camuflagem para interesses egoístas de classe.
A obra de Williams fez um bom trabalho em termos metodológicos. Baseava-se em evidências empíricas, além de fazer alegações específicas, as quais poderiam ser testadas por pesquisas posteriores. Infelizmente para Williams, trabalhos posteriores enfraqueceram sua tese a ponto de ela não ser mais sustentável. Sempre existiram séries dificuldades. Uma era a persistência e a força da escravidão em lugares como o Brasil e os Estados Unidos. Se a escravidão tinha se tornado economicamente inviável por causa do capitalismo, por que ela tinha sobrevivido por tanto tempo em uma economia claramente capitalista como a dos Estados Unidos?
Outra dificuldade foi a articulação de uma ideologia explicitamente pró-escravidão nos estados do Sul dos Estados Unidos depois dos anos 1820, precisamente quando, de acordo com Williams, o autointeresse dos fazendeiros deveria tê-los levado a apoiar a abolição. Esse último aspecto levou os defensores da tese de Williams a uma ginástica intelectual já que buscavam retratar os fazendeiros como uma elite “pré-capitalista”, apesar de fortes evidências de sua mentalidade orientada ao comércio.
No entanto, o golpe mais duro ao argumento de Williams foi dado pelo trabalho de dois historiadores, Roger Anstey e Seymour Drescher. Eles foram capazes de demonstrar duas coisas. Primeiro, o momento em que a escravidão e o comércio de escravos estavam no auge da sua lucratividade e importância econômica para a Grã-Bretanha foi precisamente quando ambos se tornaram controversos, depois da metade da década de 1780. Longe de a escravidão se tornar menos lucrativa e, dessa forma, enfraquecida como instituição, a hostilidade havia crescido junto com a viabilidade e importância econômicas para os proprietários e comerciantes de escravos. 1
Segundo, eles foram capazes de mostrar como o anti-escravagismo tinha se tornado um verdadeiro movimento de massa ao final do século XVIII e início do século XIX na Grã-Bretanha e em outros países como a França. Drescher, em particular, mostrou como o abolicionismo foi parte importante da cultura popular na Grã-Bretanha da época, conquistando apoio de pessoas que não tinham nenhum interesse econômico na questão.
Base comum
Estudos mais recentes sugerem que existia uma conexão entre o abolicionismo e o capitalismo, mas que essa conexão derivava de uma base intelectual comum em vez do autointeresse econômico. Argumentos antiescravagistas derivaram de ideias sobre a origem comum de todos os seres humanos, seus direitos naturais à liberdade, e a imoralidade do trabalho servil (em oposição à sua ineficiência). Esses argumentos estão por trás da defesa do abolicionismo e do capitalismo de livre mercado. Esses valores foram apresentados de diversas formas, como, por exemplo, no famoso medalhão de Wedgwood, que mostrava um escravo ajoelhado, acorrentado, com o slogan: “Não sou eu um homem e um irmão?” Outro elemento comum foi a participação importante da religião, particularmente o Protestantismo e Quakerismo. 2
Medalhão de Wedgwood, onde se lê, em inglês: "Não sou eu um homem e um irmão?". Imagem obtida de Wikimedia Commons / Domínio público.
Tudo isso possui implicações importantes para nosso tempo e a forma pela qual vemos a política atual. A Teoria da Escolha Pública, ou a análise econômica da política, aumentou incrivelmente nossa compreensão de como a política funciona. No entanto, pode levar também ao desespero pela falta de mudança e consequente paralisia do ímpeto por mudança. Pela perspectiva da Escolha Pública, o poder de manipular os interesses especiais (rent-seeking) pode parecer tão grande que qualquer tentativa de revogar as políticas que o geram é, em ultima instância, fútil. Tal fato pode gerar quietude e apatia política. Entretanto, o que sabemos sobre o abolicionismo sugere que devemos ter esperança.
No final do século XVIII na Europa, os proprietários e comerciantes de escravos eram um grupo organizado relativamente pequeno e coeso. Eles tinham um forte interesse econômico na continuação e extensão tanto da escravidão colonial como do comércio de escravos. Como sabemos agora, esse interesse depois de 1776 estava crescendo e não diminuindo com a abertura do comércio nas Américas. Por uma simples perspectiva da Teoria da Escolha Pública, isso teria tornado a abolição, primeiro, do comércio de escravos e, então, da escravidão praticamente impossível. Dados os benefícios concentrados da escravatura em um grupo relativamente pequeno, e seu acesso ao sistema político, qualquer ação para a abolição dessas instituições deveria ter sido bloqueada.
E, mesmo assim, não foi isso que aconteceu. Em vez disso, os abolicionistas criaram um verdadeiro movimento de massa. Ele se provou eficiente e, em última instância, exitoso, porque foi capaz de ganhar a batalha das ideias e mudar, fundamentalmente, os termos do argumento em favor da liberdade humana universal.
Nota do Cabeça Livre:
A escravidão já apareceu em outro texto aqui no site, que talvez você queira ler na sequência:
Do ponto de vista girardiano, é mais o contrário. A ideologia é secundária: uma criação e uma ferramenta de iminente unanimidade violenta. Ela cria suas condições necessárias. O mesmo pode ser dito da escravidão. Não era que os europeus pensassem que os africanos eram inferiores e, por isso, os escravizaram. O que ocorreu foi: pensar que eles eram inferiores era preciso a fim de escravizá-los.
Nesse texto, embora a escravidão não seja o tema central, o filósofo Charles Eisenstein analisa, sob a ótica do conceito de “crise sacrificial”, estabelecido pelo historiador Rene Girard, como o coletivo pode criar divisões que segregam a sociedade, se voltar contra uma classe de pessoas e massacrá-la. Ele analisa, sob essa ótica, um problema bastante atual:
Autor: Stephen Davies
Stephen Davies é diretor do setor educacional do Instute of Economic Affairs. Graduou-se na Universidade de St Andrews, na Escócia, em 1976, e ganhou seu doutorado pela mesma instituição em 1984. E autor de vários livros, incluindo Empiricism and History (Palgrave Macmillan, 2003) e foi co-editor com Nigel Ashford do Nigel Ashford of The Dictionary of Conservative and Libertarian Thought (Routledge, 1991).
Tradutor: Matheus Pacini
Revisor: Ivanildo Terceiro e Daniel Peterson
Esse texto é uma tradução da matéria originalmente escrita por Stephen Davies em 1 de dezembro de 2002 para a Foundation for Economic Education (FEE, “Fundação para Educação Econômica”).
O texto original, em inglês, publicado sob a licença CC BY 4.0, pode ser conferido em:
Essa tradução para o português foi originalmente publicada no site Portal Libertarianismo:
Eu revisei a tradução mais uma vez e adicionei comentários.
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Notas
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Roger Anstey, The Atlantic Slave Trade and British Abolition, 1760–1810 (Atlantic Highlands, N.J.: Humanities Press, 1975), and Seymour Drescher, Econocide: British Slavery in the Era of Abolition(Pittsburgh: University of Pittsburgh, 1977). ↩
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Howard Temperley, “Anti-Slavery as Cultural Imperialism” in Christine Bolt and Seymour Drescher, eds., Anti- Slavery, Religion and Reform: Essays in Memory of Roger Anstey (Hamden, Conn.: Archon Books, 1980), pp. 335–50. ↩