Uma terceira perspectiva sobre protestos, liberdade de expressão e liberdade de reunião.
Crédito da imagem: ΙΣΧΣΝΙΚΑ-888, Wikimedia Commons, CC BY-SA 4.0
É difícil de acreditar, mas o aniversário de um ano dos protestos de caminhoneiros no Canadá está chegando. Era 22 de janeiro de 2022 quando o comboio começou a se formar em todo o país. Na semana seguinte, milhares de caminhões seguiram para Ottawa e, em 29 de janeiro, chegaram à capital do país, barulhentos e determinados como nunca antes.
O mês seguinte foi um dos momentos mais tumultuados da história moderna do Canadá. O centro de Ottawa estava completamente engarrafado, as pontes bloqueadas e os políticos, juntamente com a mídia, não perderam uma oportunidade de difamar os manifestantes.
Quatro semanas depois, terminou um pouco mais rápido do que a maioria das pessoas esperava. Armado com poderes especiais da Lei de Emergências nunca antes invocada, o governo desmanchou o protesto com sucesso em questão de dias.
Em retrospecto, o efeito prático do protesto na legislação é difícil de detectar. Algumas políticas da Covid provavelmente foram relaxadas alguns meses antes do que teriam sido, mas para os organizadores do Comboio da Liberdade, isso estava longe de ser uma vitória decisiva.
Um conflito insolúvel
Um debate tem ocorrido no Canadá desde então: os manifestantes tinham direito de fazer o que fizeram? Aqueles que apoiam o comboio argumentam que sim, já que a Carta Canadense de Direitos e Liberdades garante o direito à liberdade de expressão e à liberdade de reunião pacífica. Aqueles que se opõem ao comboio concordam amplamente com essas liberdades, mas argumentam que tais liberdades devem estar sujeitas a certas restrições razoáveis. As maiores obstruções ao tráfego e, especialmente, as obstruções a infraestruturas críticas, como pontes, foram simplesmente longe demais, na visão deles. Deveria o governo ficar parado e deixar um grupo de vândalos colocar o país de joelhos?
A questão de quem estava legalmente certo é intrigante, mas essa questão é melhor tratada por advogados. A questão mais interessante é quem estava certo filosoficamente. Os manifestantes estavam apenas exercendo sua liberdade de expressão e reunião e, portanto, reprimi-los estava violando seus direitos? Ou o governo tem a competência legítima de garantir que ruas e pontes não sejam obstruídas?
Como libertários, é tentador tomar partido nesse debate, mas essa é uma tentação à qual devemos resistir. Há uma terceira posição melhor que reformula toda a questão, e essa é a posição que devemos adotar. Essa posição foi explicada explicitamente por Murray Rothbard em seu livro de 1970, Poder e Mercado: o Governo e a Economia. De fato, lendo sua explicação, você poderia pensar que ele estava avaliando o próprio debate do Comboio.
Rothbard começa desafiando o próprio conceito de “direitos humanos”, argumentando que um princípio muito melhor é o dos direitos de propriedade. Ele chama especificamente o “direito humano” de liberdade de expressão de um conceito problemático. Rothbard escreve:
A liberdade de expressão deve significar o direito de todos a dizer tudo o que quiserem. Mas a questão que deixamos de lado é: onde? Onde um homem tem esse direito? Certamente não o possui na propriedade que infringe. Em suma, ele tem esse direito somente na própria propriedade ou na propriedade de alguém que concordou, graciosamente ou por contrato de locação, a permitir-lhe a presença no recinto. Na verdade, então, não há um “direito a livre expressão” como algo aparte; há somente o direito de propriedade: o direito de fazer como bem entender com aquilo que é seu ou de fazer acordos voluntários com outros proprietários.
Tendo dispensado o “direito à liberdade de expressão”, Rothbard recua e discute a questão mais ampla em jogo.
A atenção em direitos “humanos” vagos e totalizantes não só obscureceu esse fato, mas levou à crença de que existem, necessariamente, todos os tipos de conflitos entre direitos individuais e supostas “políticas públicas” ou com o “bem público”. Tais conflitos, por sua vez, têm levado as pessoas a afirmar que nenhum direito pode ser absoluto, que todos os direitos devem ser relativos e experimentais.
Um protesto público é o exemplo perfeito desse problema, explica Rothbard.
Tomemos, por exemplo, o direito humano de “liberdade de associação”. Suponhamos que um grupo de cidadãos deseje realizar de uma manifestação pública à favor de determinada medida. Utilizam a rua para tal propósito. A polícia, por outro lado, interrompe o encontro com a justificativa de que está a obstruir o tráfego. Ora, a questão é que não há como resolver esse conflito, a não ser arbitrariamente, pois o governo é o dono das ruas. A propriedade governamental, como vimos, inevitavelmente dá ensejo a conflitos insolúveis. Pois, por um lado, o grupo de cidadãos pode argumentar que são pagadores de impostos e, portanto, com direitos a utilizar as ruas para reuniões, enquanto, por outro lado, a polícia está certa, pois o tráfego está sendo obstruído. Não há maneira racional de resolver o conflito, pois não há nenhuma propriedade verdadeira, até o momento, do valioso recurso chamado rua.
Como Rothbard deixa claro, simplesmente não há uma boa resposta sobre a ação adequada quando o governo detém o poder sobre o terreno em que o protesto ocorre. Ambos os lados têm um argumento igualmente válido, e não importa que lado você tome, será acusado de violar os direitos do outro lado.
A solução: privatizar as estradas
A melhor solução para esse lamaçal é tão simples quanto radical: privatizar as estradas. Rothbard explica como isso resolve o problema.
Numa sociedade totalmente livre, em que as ruas seriam privadas, a questão seria simples: caberia ao dono da rua decidir, e seria problema do grupo de cidadãos tentar alugar voluntariamente, junto ao proprietário, um espaço de rua. Se toda a propriedade fosse privada, ficaria bem claro que os cidadãos não possuem qualquer direito nebuloso de “associação”. O direito seria o direito de propriedade de usar o próprio dinheiro na tentativa de comprar ou arrendar um espaço para realizar a manifestação, e só poderiam fazê-la se o proprietário da rua concordasse.
Como demonstra a análise de Rothbard, a ideia de que direitos devem ser “relativos” e equilibrados com o “bem público” só soa convincente porque, para começo de conversa, temos direitos fundamentalmente mal interpretados. Se alguém aceita e defende vagos “direitos humanos” como o direito à liberdade de expressão e à liberdade de reunião (como faz a Carta Canadense), deve-se admitir que, se a situação for terrível o suficiente, esses direitos devem simplesmente ser violados, para que o país não pare.
Mas se, por outro lado, alguém defende os direitos de propriedade e todas as terras públicas são privatizadas, tais soluções de compromisso com os princípios não são necessárias. Se as pessoas estão ansiosas para usar ruas e pontes privadas para transporte, elas podem facilmente oferecer pagar mais que os possíveis manifestantes pelo uso da terra. Proprietários de estradas privadas, sendo os capitalistas gananciosos que sem dúvida serão, ficarão felizes em reservar a estrada para o uso mais lucrativo – o uso que os consumidores geralmente preferem – e estaria bem dentro de seus direitos remover à força quaisquer invasores que tentassem fazer um bloqueio não autorizado.
Mas e se os donos das estradas ou pontes forem aliados dos manifestantes e determinados a bloquear os corredores que eles possuem? Eles certamente estariam no seu direito de fazer isso, mas os consumidores rapidamente levariam seus negócios para corredores paralelos, infligindo prejuízos tremendos ao proprietário desafiador. Se as coisas ficassem realmente ruins, o proprietário poderia até mesmo ser condenado ao ostracismo por empresas e trabalhadores que desaprovassem sua decisão. Assim, qualquer proprietário de estrada tolo o suficiente para cortar pontos de acesso críticos acabaria deixando o negócio em pouco tempo.
Dito isso, com toda a probabilidade nunca chegaria a esse ponto. Os usuários das vias e principalmente os usuários das pontes, prevendo essa possibilidade, exigiriam contratos pré-estabelecidos que garantissem o uso do corredor por um determinado período de tempo. Com esses contratos em vigor, o proprietário seria legalmente obrigado a manter o corredor aberto.
Desafiando o enquadramento
À luz do que foi dito acima, estou inclinado a seguir Michael Malice e retirar a expressão “liberdade de expressão” do meu vocabulário – e “liberdade de reunião” também, por falar nisso. Como Rothbard e Malice apontam, essas expressões significam muitas coisas diferentes para pessoas diferentes, e criam uma tremenda confusão sobre o que exatamente significa defender as liberdades civis.
Agora, você pode não concordar com essa abordagem, e tudo bem. O ponto mais importante aqui é que o trabalho do libertário na maioria dos debates é desafiar o enquadramento, não tomar partido.
É tão tentador identificar “nosso time” e “o time deles” e juntar-se ao coro de vozes que parece estar do nosso lado, mas precisamos ser melhores que isso. Defender o bloqueio de pontes e ruas da cidade não é, a rigor, uma posição libertária. Novamente, condenar um bloqueio também não é. A posição libertária é simplesmente o meta-ponto de que isso não seria um problema em primeiro lugar se as pontes e ruas fossem de propriedade privada. Essa é a batida que precisamos tocar.
Tomar partido não ajuda em nada a resolver o problema subjacente. Desafiar o enquadramento é o que realmente move em direção a uma solução.
Isso vale para muitas outras questões também. Quem deveria estar no poder: os republicanos ou os democratas? A resposta é: devemos desafiar a ideia de que qualquer pessoa deveria estar no poder. Deveria haver oração nas escolas? A resposta é: devemos questionar por que precisa haver uma resposta governamental única que se aplique a todos, em vez de permitir um livre mercado na educação.
Tomar partido em debates existentes frequentemente só serve para reforçar o status quo, porque é aceitar implicitamente a forma como o debate foi enquadrado. Também convida seus oponentes a te ignorar, porque você soa a eles como apenas outro “minion”.
Mas se tivermos uma posição única, se pudermos questionar as suposições que ambos os lados estão aceitando, de repente as pessoas vão querer ouvir o que temos a dizer. Elas podem não concordar conosco, mas pelo menos serão desafiadas a pensar sobre o assunto de uma forma diferente.
E, francamente, isso já é metade da batalha.
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Autor: Patrick Carroll
Patrick Carroll é formado em Engenharia Química pela Universidade de Waterloo e é membro editorial da Foundation for Economic Education (FEE, “Fundação para Educação Econômica”).
Tradutor: Daniel Peterson
Esse texto é uma tradução da matéria originalmente escrita por Patrick Carroll em 20 de janeiro de 2023 para a FEE.
O texto original, em inglês, publicado sob a licença CC BY 4.0, pode ser conferido em: