Cabeça Livre

OMS diz que transmissão a partir de pessoa assintomática é muito rara

Uma fala da chefe do programa de emergências da Organização Mundial de Saúde (OMS), Maria Van Kerkhove, na coletiva de imprensa dessa segunda-feira 8 de junho chamou a atenção da imprensa nacional e internacional e foi assunto de debate nas redes sociais.

A epidemiologista afirmou que parece ser “rara” a transmissão do coronavírus a partir de pessoas que não apresentam sintomas.

Diversos sites noticiaram essa informação, cada um a seu modo:

Mas afinal, o que de fato ela disse? Cético como eu sou, fui conferir direto na fonte.

A coletiva de imprensa pode ser assistida na íntegra pelo canal oficial da OMS no YouTube:

Toda a coletiva está em inglês, mas possui legendas geradas automaticamente (closed caption). Você pode ativar as legendas em português: o YouTube reconhece a voz de quem está falando, gera legendas no inglês e já as traduz para o português, tudo isso automática e instantaneamente. Dependendo da sua familiaridade com a língua inglesa, você também pode assistir ao vídeo em inglês mesmo, com ou sem legendas.

A fala que gerou a repercussão pode ser vista entre 31:40 e 35:20 aproximadamente.

A jornalista Emma Farge, da agência da notícias Reuters, faz uma pergunta. Na sequência, Maria Van Kerkhove, da OMS, responde.

A seguir, apresento a transcrição da pergunta e da resposta já traduzidas para o português (fiz alguns destaques em negrito). No final dessa página, você pode ver a transcrição das falas originais em inglês.

Transcrição em português

— Boa tarde. É uma pergunta sobre transmissão assintomática. Eu sei que a OMS já havia [incompreensível] que não há casos documentados disso. Ouvimos uma história vinda de Singapura hoje dizendo que pelo menos metade dos novos casos que eles estão vendo não apresenta sintomas. Gostaria de saber se é possível que isso tenha um papel maior do que a OMS inicialmente pensava na propagação da pandemia e quais seriam as implicações políticas disso. Obrigado.

— Eu posso começar e talvez Mike queira complementar. Há algumas coisas na pergunta que você acabou de fazer.

Um é o número de casos que estão sendo reportados como assintomáticos.

Ouvimos de vários países que um número X, um percentual X deles é reportado como não tendo sintomas ou que eles estão em sua fase pré-sintomática, o que significa que estão a alguns dias antes que eles realmente desenvolvam sintomas graves. Em vários países, quando voltamos e discutimos com eles, um: como esses casos assintomáticos estão sendo identificados? Muitos deles estão sendo identificados por meio do rastreamento de contatos, que é o que gostaríamos de ver: você tem um caso conhecido, você busca seus contatos, eles já estão em quarentena, com sorte, e alguns deles são testados. E então você percebe pessoas que podem ser assintomáticas, não ter sintomas ou mesmo ter sintomas leves.

A outra coisa que descobrimos é que, quando na verdade voltamos e dizemos quantos deles eram verdadeiramente assintomáticos, descobrimos que muitos têm doenças realmente leves, doenças muito leves. Não são “sintomas de COVID”, quer dizer que eles podem ainda não ter desenvolvido febre, eles podem ainda não ter desenvolvido uma tosse significativa ou podem não ter tido falta de ar, mas alguns podem ter tido uma doença leve. Dito isso, sabemos que pode haver pessoas que são verdadeiramente assintomáticas e positivas para PCR.

A segunda parte da sua pergunta é: que proporção de indivíduos assintomáticos realmente transmitem?

A maneira como vemos isso: esses indivíduos precisam ser acompanhados com cuidado ao longo de quando eles são detectados e observando a transmissão secundária.

Temos vários relatórios de países que estão fazendo rastreamento de contatos muito detalhado. Eles estão acompanhando casos assintomáticos. Eles estão seguindo contatos e não estão encontrando transmissão secundária daí em diante, é muito raro. E muito disso não é publicado na literatura. Dos artigos que foram publicados, saiu um de Singapura, olhando para uma instituição de assistência a idosos. Existem alguns estudos de transmissão em casa em que você acompanha indivíduos ao longo do tempo e analisa a proporção daqueles que transmitem adiante. Estamos constantemente analisando esses dados e estamos tentando obter mais informações dos países para realmente responder a essa pergunta. Ainda parece ser raro que um indivíduo assintomático realmente transmita adiante.

O que realmente queremos focar é em acompanhar os casos sintomáticos. Se acompanhássemos todos os casos sintomáticos (porque sabemos que esse é um patógeno respiratório, ele passa de um indivíduo através de gotículas infectadas), se realmente acompanhássemos todos os casos sintomáticos, isolássemos esses casos, seguíssemos os contatos e colocássemos esses contatos em quarentena, reduziríamos drasticamente. Eu adoraria poder dizer uma proporção de quanta transmissão realmente pararíamos, mas seria uma redução drástica na transmissão. Se pudéssemos focar nisso, acho que faríamos muito, muito bem em termos de suprimir a transmissão. Mas a partir dos dados que temos, ainda parece raro que uma pessoa assintomática realmente transmita adiante para um indivíduo secundário.

Reflexões sobre a coletiva

É possível perceber que durante toda a coletiva de imprensa a OMS menciona muito as expressões rastreamento de contatos (contact tracing) e fiscalização (surveillance).

O site rev.com disponibiliza uma transcrição de toda a coletiva em inglês.

A expressão contact tracing (ou sinônima) aparece 15 vezes na transcrição. Considerando que a coletiva durou 44 minutos, ela é dita em média 1 vez a cada 3 minutos. Já a expressão surveillance aparece 6 vezes ao todo.

A OMS parece realmente indicar o rastreamento de contatos, embora admita que pode ser um desafio quanto à privacidade (isso pode ser visto no vídeo por volta de 5:50) e que é necessário mais evidência de que essas ferramentas sejam efetivas no combate à doença.

Bem… cada um faz o que quiser com seu celular. Eu, que prezo pela minha privacidade, não vou instalar aplicativo algum.

Nessa coletiva, temos uma participação da Globo, representada pela jornalista Bianca Rothier, por volta de 11:50. Resumidamente, ela relata as alterações que o presidente fez na divulgação dos números e pergunta se a OMS confia nos dados oficiais do Brasil e se está preocupada.

O diretor-executivo do programa de emergências, Michael Ryan, respondeu que os dados que recebe do país estão entre os mais detalhados e atualizados no mundo e que espera que continuem assim.

Mais informações sobre a participação da jornalista podem ser vistas nessa página do G1:

Dizer que a OMS “cobrou” do Brasil (como se o país tivesse “levado uma bronca” na coletiva) talvez seja uma palavra forte. Mas o diretor pode ter feito algo como “criticar elogiando”.

Na sequência, por volta de 17:50, Michael Ryan afirmou que a América Latina precisa de uma liderança governamental forte. Essa afirmação me deixou confuso: estamos falando de saúde, ou de política?

Por último, me chamou a atenção a participação de um repórter da revista Science no final da coletiva (38:10). Ele relata que saíram alguns dados dos primeiros estudos clínicos randomizados sobre a hidroxicloroquina e pergunta se a OMS pensa em interromper essa parte dos estudos, com base nesses dados.

Essa pergunta é curiosa porque a OMS acabou de retomar os estudos sobre a cloroquina. Eles foram suspensos após a publicação de um artigo da revista Lancet que condenava seu uso, mas esse artigo foi retratado, o que tornou necessária a realização de novos estudos.

Parece haver uma pressão para que a OMS pare de estudar a cloroquina.

Torcer contra um time de futebol, eu até entendo. Torcer contra político A ou B, eu até entendo. Mas torcer contra um remédio?

Eu, sinceramente, torço que seja encontrada uma cura para a Covid-19, não me importa se será substância A ou B, quem estará “certo” ou “errado” no final das contas.

Esclarecimento da OMS

Diante da polêmica depois da coletiva da segunda, na terça (ontem) a OMS fez outra coletiva tentando esclarecer. Deixo o vídeo da fonte oficial para quem tiver interesse em assistir:

Eu fico por aqui. Como prometido, a seguir a transcrição original daquele diálogo em inglês.

Transcrição em inglês

— Good afternoon. It is a question about asymptomatic transmission. I know that the WHO has previously [inaudible] that there are no documented cases of this. We heard a story out of Singapore today saying that at least half of the new cases they are seeing have no symptoms. I wonder if it is possible that this has a bigger role than the WHO initially thought in propagating the pandemic and what the policy implications of that might be. Thank you.

— I can start and perhaps Mike would like to supplement. There are a couple of things in the question that you just asked.

One is the number of cases that are being reported as asymptomatic.

We hear from a number of countries that X number, X percentage of them are reported as not having symptoms or that they are in their presymptomatic phase, which means it is a few days before they actually develop severe symptoms. In a number of countries, when we go back and discuss with them, one: how are these asymptomatic cases being identified? Many of them are being identified through contact tracing, which is what we would want to see: you have a known case, you find your contacts, they are already in quarantine, hopefully, and some of them are tested. And then you pick up people who may have asymptomatic or no symptons or even mild symptoms.

The other thing we are finding is that when we actually go back and say how many of them were truly asymptomatic, we find out that many have really mild disease, very mild disease. They are not “COVID symptons”, meaning they may not have developed fever yet, they may not have had a significant cough, or they may not have shortness of breath, but some may have mild disease. Having said that, we do know there can be people who are truly asymptomatic and PCR positive.

The second part of your question is: what proportion of asymptomatic individuals actually transmit?

The way we look at that: these individuals need to be followed carefully over the course of when they are detected and looking at secondary transmission.

We have a number of reports from countries who are doing very detailed contact tracing. They are following asymptomatic cases. They are following contacts and they are not finding secondary transmission onwards, it is very rare. And much of that is not published in the literature. From the papers that are published, there’s one that came out from Singapore, looking at a longterm care facility. There are some household transmission studies where you follow individuals over time and you look at the proportion of those that transmit onwards. We are constantly looking at this data and we are trying to get more information from countries to truly answer this question. It still appears to be rare that an asymptomatic individual actually transmits onward.

What we really want to be focused on is following the symptomatic cases. If we followed all of the symptomatic cases, because we know that this is a respiratory pathogen, it passes from an individual through infectious droplets. If we actually followed all of the symptomatic cases, isolated those cases, followed the contacts and quarantined those contacts, we would drastically reduce. I would love to be able to give a proportion of how much transmission we would actually stop, but it would be a drastic reduction in transmission. If we could focus on that, I think we would do very, very well in terms of suppressing transmission. But from the data we have, it still seems to be rare that an asymptomatic person actually transmits onward to a secondary individual.

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