Você já prestou atenção em como se sente ao ver o jornal na TV? Se ainda não, sugiro a experiência: ligue a TV na hora do Jornal Nacional, assista todo o noticiário e conte (pode ser usando papel e caneta, por exemplo) quantas notícias te fazem sentir raiva, tristeza, ansiedade, falta de fé na humanidade, e quantas notícias te fazem sentir bem, feliz, empolgado, esperançoso. Talvez você se surpreenda com o resultado. É sabido que a grande mídia esconde de nós as notícias boas. Notícias ruins dão mais audiência.
Dito isso, talvez agora não seja surpreendente se eu te disser que em 2020 a audiência recorde do Jornal Nacional foi registrada em 17 de março, dia em que foi confirmada a primeira morte por coronavírus no Brasil. Nesse dia, o jornal foi mais visto até que a novela.
Não pense você que a Internet está livre disso. Com a migração da antiga TV para a disruptiva Internet, os jornais online seguem a mesma tendência. Já mostrei aqui vários exemplos de como a Covid é tratada com sensacionalismo pelos sites de notícias.
Hoje, quero chamar mais uma vez a atenção para esse sensacionalismo. Olhando em retrospectiva, quero trazer algumas novas informações e te convidar à reflexão: será que estamos tão ruins assim? É realmente necessário tudo isso que estamos passando?
O que disseram que ia acontecer
Agora que estamos atentos ao fato que notícias ruins dão mais audiência, lembremos que em março havia uma projeção de que 1,4 milhão de pessoas morreriam no Brasil pela Covid-19 até o fim de agosto, caso nenhuma medida de isolamento fosse adotada.
O que aconteceu
Tentar prever o futuro é difícil, olhar para o passado é mais fácil.
Agora que estamos em outubro, podemos ver o que aconteceu e avaliar aquela projeção.
As estatísticas oficiais dizem que no mundo, até agora, aproximadamente 1 milhão de pessoas morreram com Covid-19, enquanto no Brasil tivemos 144.680 mortes.
São, sem sombra de dúvida, números tristes. Porém, podemos tentar olhar esses números por outro ângulo: as previsões mais pessimistas (1,4 milhões no Brasil) não se confirmaram.
Agora, vejamos com mais detalhes os números do Brasil:
- Casos confirmados: 4.847.092 (essas são 100% das pessoas que testaram positivo para Covid no Brasil)
- Casos recuperados: 4.212.772 (86,9%)
- Em acompanhamento: 489.640 (10,1%)
- Óbitos confirmados: 144.680 (3%)
Quero chamar a atenção para a quantidade de pessoas que já se recuperaram, que venceram a doença, muito maior que a quantidade de pessoas que morreram com ela. Se você dividir a quantidade de recuperados pela quantidade de mortos, verá que há 29 vezes mais pessoas que se recuperaram do que pessoas que morreram.
Talvez um gráfico nos ajude a visualizar ainda melhor a dimensão da recuperação.
Acumulado de casos de Covid-19 no Brasil. Com dados de: covid.saude.gov.br. Acesso em: 01 de outubro de 2020.
Você já viu um gráfico assim em algum outro site? Provavelmente não. Agora sabe porque.
O que provavelmente você já ouviu falar é que há subnotificação: os casos confirmados correspondem apenas às pessoas que manifestaram os sintomas da doença, procuraram atendimento, fizeram o teste e deu positivo. Estima-se que, na verdade, mais pessoas tiveram contato com o coronavírus do que os números oficiais indicam.
Essa informação normalmente é noticiada para causar medo, mas aqui quero propor uma visão alternativa: provavelmente, o número de pessoas que se recuperaram da Covid é ainda maior do que os números oficiais indicam, já que a maior parte das pessoas provavelmente já teve contato com o vírus e nem percebeu.
Lembremos do que disse o Dr. Drauzio Varella em março no Fantástico, no início da pandemia no Brasil. Ele explicou que, para a maioria das pessoas, os sintomas da Covid seriam semelhantes aos de um resfriado.
O Coronavírus chegou no Brasil. E agora? Tudo, a gente não sabe. É a primeira vez. Mas a gente sabe que é um vírus que se dissemina depressa. Provoca uma doença grave? Na grande maioria das vezes, não. Provoca um quadro benigno, muito semelhante ao dos resfriados. Mas existe uma pequena porcentagem que vai ter complicações pulmonares. Quem são elas? São os mais velhos, os que têm mais de 70, 80 anos. Os que têm doenças crônicas: pressão alta descontrolada, diabetes descompensada, insuficiência cardíaca, renal, doenças que comprometem o funcionamento do sistema imunológico, e os fumantes, porque o cigarro desgraça os pulmões.
A falácia do franco atirador-texano
Quanto ao autor daquela previsão pessimista que não se confirmou… bem, ele fez um vídeo pra tentar explicar o que aconteceu:
O canal do YouTube dele foi outro que viu sua audiência aumentar durante a pandemia.
Mas você já ouviu falar na falácia do franco-atirador texano?
É o nome de uma parábola em que um homem com uma arma, mas nenhuma habilidade em atirar, dá alguns disparos na parede de um celeiro, depois pinta alvos em volta dos buracos para dar a falsa impressão de que é um excelente atirador.
Trazendo para o contexto científico, um “franco-atirador texano” é um pesquisador que selecionou a dedo uma amostra dos dados que se adequava ao seu argumento ou buscou um padrão que se encaixava na sua hipótese.
A percepção humana tende a identificar padrões onde não há realmente um padrão. Ignoramos as diferenças e nos concentramos nas semelhanças, aumentando assim o risco de chegarmos a conclusões falsas. Para que a conclusão seja convincente, a hipótese deve ser definida de antemão (ou, na parábola, deve-se pintar o alvo antes de disparar as balas).
Veja esse vídeo e perceba as falhas naquela explicação, que mais se parece com essa alegoria do atirador pintando alvos em volta dos buracos na parede:
Custa a ele admitir que tentou prever algo que era impossível de prever?
Cuidado com o sensacionalismo
Tome muito cuidado com canais de TV, sites de notícias, canais do YouTube sensacionalistas. Leia atentamente, interprete o que está lendo, preste atenção aos números, faça as contas, confira, tente descobrir algo que não foi dito, pesquise, procure fontes de informação alternativas. Talvez você se surpreenda com o que vai encontrar.