Cabeça Livre

O capitalismo é a razão do Natal?

Todo ano acontece uma escaramuça pública em uma guerra cultural em andamento contra o final do ano e suas festividades. O principal feriado do inverno tornou-se muito secular ou muito excludente, muito politicamente correto ou incorreto, e sempre: muito materialista.

Homens desordeiros em trapos coloridos se reúnem do lado de fora das casas mais bonitas da cidade, exigindo permissão para entrar. Alguns se disfarçam com falsas roupas extravagantes que ridicularizam seus anfitriões nada animados com o que se passa, enquanto outros enegrecem seus rostos ou se vestem como animais. Se você tentar mantê-los do lado de fora, eles quebrarão suas janelas, arrombarão sua porta e se servirão de comida e bebida. Se, em vez disso, você conceder acesso à ralé, seus convidados fantasiados beberão sua melhor bebida e exigirão uma “gorjeta” em dinheiro por cantar embriagados uma música barulhenta para sua família.

Bem-vindo a um Natal tradicional, como foi celebrado por mais de mil anos: desde os últimos dias de Roma, passando pela Londres do final da Idade Média, até a Nova York do século XVIII.

Sem Papai Noel, sem árvore de Natal, sem guirlanda, azevinho ou visco. E sem mais sinais da Sagrada Família do que haveria em qualquer outra época do ano.

“Era tudo um pouco como o Halloween de hoje,” escreve o historiador Stephen Nissenbaum no livro The Battle for Christmas [“A Batalha Pelo Natal”, em tradução livre], “quando, por uma única noite, as crianças assumem o direito de entrar nas casas dos vizinhos e até de estranhos, para exigir dos mais velhos um presente (ou ‘doce’ [de ‘doces ou travessuras’]) e ameaçá-los, caso eles deixem de fornecer um, com uma punição.”

Mas, ao contrário do Halloween moderno, o Natal tradicional envolvia intimidação de verdade: os peticionários fantasiados não eram crianças pequenas, mas jovens de classe baixa; eles já estavam bêbados, mas exigiam beber ainda mais.

Como esse ritual anual de clamor e extorsão se transformou em uma noite santa e silenciosa?

Essa transformação não foi uma conversão religiosa de bacanal pagão para observância piedosa, apesar de séculos de esforço das autoridades da Igreja. O moderno Natal doméstico é mais recente do que a Revolução Industrial e, assim como essa revolução, foi em parte causa e em parte consequência do capitalismo comercial.

O conflito das culturas natalinas

Do meu canto habitual no Starbucks do bairro, posso ver os clientes pegando as bebidas que pediram. Às vezes, seus copos de papel têm seus nomes escritos com marcador preto; às vezes, o barista desenha um rosto sorridente com linhas grossas para um cliente frequente favorito. Recentemente, comecei a ver “Feliz Natal” escrito no fundo vermelho vazio do copo. Fiquei surpreso na primeira vez que vi isso. Essa saudação nominalmente cristã praticamente desapareceu das cadeias comerciais nacionais, à medida que os Estados Unidos se tornam mais diversificados culturalmente e os norte-americanos se tornam mais sensíveis a supostas discriminações. Por que, em uma era de “boas festas” transculturais, alguns poucos selecionados estão recebendo felicitações mais específicas das suas denominações com seus cappuccinos de Natal?

Eis aqui o que acontece:

Cliente: “Eu gostaria de um café com leite com especiarias de abóbora.”

Barista: “Posso saber seu nome, senhor?”

Cliente: “Sim, é Feliz Natal.”

Barista: “Obrigado, Senhor Natal. Custa 5 dólares.

Esse diálogo é parte de um protesto nacional de cristãos evangélicos, liderado por Joshua Feuerstein, que se auto descreve como “personalidade das redes sociais”. O objeto desse protesto são os copos de Natal sem adornos deste ano na Starbucks. Todo mês de novembro, a sofisticada cadeia de cafés muda de suas habituais xícaras brancas e verdes para recipientes vermelhos com tema natalino. No passado, esses copos vermelhos apresentavam flocos de neve, cenas de inverno ou outros ícones de fim de ano. Quando os copos vermelhos deste ano apareceram sem enfeites, Feuerstein postou no Facebook: “Starbucks REMOVEU O NATAL dos seus copos porque odeia Jesus.”

“Em vez de simplesmente boicotar”, disse Feuerstein em um vídeo anexado ao seu post, “por que não iniciamos um movimento?” Ele foi ao Starbucks mais próximo, pediu uma xícara de café e disse ao barista que seu nome era Feliz Natal. “Adivinhe, Starbucks – eu preguei uma peça em você e te fiz colocar Feliz Natal no seu copo!” Esse vídeo foi assistido milhões de vezes e compartilhado por centenas de milhares de espectadores simpatizantes à causa.

A campanha de Feuerstein é apenas a mais recente controvérsia de Natal. Tornou-se uma tradição não oficial na América que, à medida que as noites ficam mais longas e a temperatura cai, deve haver uma escaramuça pública em uma guerra cultural em andamento contra o final do ano e suas festividades. O principal feriado do inverno tornou-se muito secular ou muito excludente, muito politicamente correto ou incorreto, e sempre: muito materialista.

Implícita nas acusações está a ideia de que forças antipáticas corromperam nosso feriado e degradaram nossas tradições de longa data. Sempre afirmamos que perdemos a noção do verdadeiro significado do Natal.

Mas mais antiga do que a maioria das nossas tradições modernas de Natal é a tradição de brigar sobre como comemorar no final de dezembro – ou mesmo se deve haver comemoração. Feuerstein e seus vários seguidores parecem acreditar que deixar de observar explicitamente o Natal é um ataque ao cristianismo. Mas, certa vez, alguns dos cristãos mais zelosos da América assumiram a posição oposta.

Os tradicionais inimigos do Natal

Nos primeiros dois séculos de colonização branca na Nova Inglaterra, escreve Nissenbaum, não havia celebração oficial do Natal.

Na verdade, o feriado foi sistematicamente suprimido pelos puritanos durante o período colonial. De fato, chegou a ser até mesmo ilegal celebrar o Natal em Massachusetts entre 1659 e 1681.

Por que tanta hostilidade em relação ao Natal por parte dos piedosos cristãos? De acordo com os puritanos, o Natal não era realmente um feriado cristão.

Foi apenas no século IV que a Igreja decidiu oficialmente observar o Natal em 25 de dezembro. E essa data foi escolhida não por motivos religiosos, mas simplesmente porque marcava a chegada aproximada do solstício de inverno, evento que era comemorado muito antes do advento do cristianismo. Os puritanos estavam corretos quando apontavam – e apontavam com frequência – que o Natal nada mais era do que uma festa pagã coberta com um verniz cristão.

Quando você considera como o Natal foi celebrado por mais de um milênio – com bêbados desgovernados, ameaça e invasão aberta de propriedade – é mais fácil entender a antipatia puritana ao feriado.

Mas, com o tempo, os opositores desse Natal carnavalesco descobriram que não conseguiriam suprimir a comemoração.

Hoje, “diversidade” é uma palavra da moda para o tipo de politicamente correto que Feuerstein afirma ser o inimigo do Natal. Mas a única época em que o Natal foi parcialmente suprimido foi quando uma população homogênea de devotos dominava a cultura e o governo.

À medida que a América se tornava mais diversificada em origens e crenças, o Natal se reafirmava.

A tentativa puritana de banir o Natal fazia parte de uma campanha maior para impor uma compreensão específica da religião bíblica na Inglaterra e na América, mas também tinha um objetivo mais prático, secular: dispersar as multidões que se reuniam em público para praticar sua versão desordenada do feriado.

No início do século XIX, um grupo diferente de homens ricos e poderosos tentou reformular o feriado para sua própria agenda social. O fato de seus esforços terem sido tão bem-sucedidos tem menos a ver com seus objetivos específicos do que com o quão bem suas tradições inventadas serviram à cultura comercial emergente do capitalismo industrial.

Inventando tradição

Em 1975, um pequeno grupo de artistas de Boston buscava uma maneira alternativa de comemorar a véspera de Ano Novo, uma que evitasse a usual ênfase na bebedeira. A solução deles foi chamada de First Night [“Primeira Noite”], uma reunião de artistas e público que buscava dar as boas-vindas ao Ano Novo sem álcool. O evento foi um sucesso e as comunidades próximas logo o adotaram. No final do século XX, já havia se espalhado para mais de 250 cidades norte-americanas. Em 2006, a First Night atraiu mais de um milhão de visitantes.

Um século e meio antes, nova-iorquinos ricos perseguiam uma missão semelhante: oferecer uma alternativa ao tipo de Natal que a historiadora Susan G. Davis chamou de “desordem desenfreada, violência racial e diversão tola para vizinhos e público”.

A combinação da “licença habitual de Natal” e o desemprego sazonal que ainda ocorria em uma economia baseada principalmente na agricultura, Davis escreve no livro Parades and Power [“Desfiles e Poder”], “tornava o feriado de inverno um período barulhento, bêbado e ameaçador aos olhos dos respeitáveis”.

Alguns dos respeitáveis tomaram para si a tarefa de criar uma alternativa ao Natal tradicional. Os Knickerbockers (o nome vem de um pseudônimo usado pelo membro mais conhecido do grupo, Washington Irving) eram “um pequeno grupo de senhores nova-iorquinos de mente antiquada” que, de acordo com Nissenbaum, “sentiam que pertenciam a uma classe patrícia cuja autoridade estava sitiada”, especialmente durante os tumultos anuais de inverno.

Como os artistas do First Night, os Knickerbockers decidiram que a solução não era proibir a atividade indesejada, mas oferecer-lhe alguma concorrente. Ao contrário do First Night, a alternativa dos Knickerbockers era comemorar não em público, mas em casa, e não entre uma multidão de estranhos, mas com a família mais próxima.

Essa tentativa de inventar um novo Natal doméstico assumiu várias formas, mas aquela que capturou a imaginação do público foi o Natal em família, centrado nas crianças pequenas, presentes de Natal e um novo santo padroeiro da troca de presentes: São Nicolau.

A sabedoria estabelecida pode ser que o Papai Noel norte-americano, agora uma figura global, era “uma criatura do antigo folclore holandês”, como Nissenbaum coloca, “que fez seu caminho até o Novo Mundo na companhia de imigrantes da Holanda”. Mas o Papai Noel foi, na verdade, uma invenção dos protestantes anglo-saxões e, em particular, de Clement Clarke Moore, autor de A Visit from Saint Nicholas [“Uma Visita de São Nicolau”]. Mais conhecido como ‘Twas the Night before Christmas [“Foi a Noite Antes do Natal”], o poema foi publicado pela primeira vez em 23 de dezembro de 1823 e se tornou, de acordo com um historiador de Nova York, “indiscutivelmente os versos mais conhecidos já escritos por um norte-americano”.

Reinventando crianças

O Papai Noel teve predecessores, principalmente o histórico São Nicolau (em inglês, Saint Nicholas, em holandês, Sinterklaas), mas, antes do século XIX, não havia uma tradição generalizada na América de dar presentes de Natal para crianças – em parte porque nossa ideia atual de infância é uma invenção recente.

Nos tempos pré-modernos, a maioria das crianças era tratada como mini-adultos – ainda não totalmente formados, mas não essencialmente diferentes de qualquer outra pessoa. Há alguma discordância entre os historiadores sobre o afeto e as atitudes dos pais em relação aos filhos nas eras de alta mortalidade infantil, mas se deixarmos de lado a questão historicamente espinhosa da ternura familiar, podemos ver que o dever dos pais, comumente entendido, era preparar as crianças para a vida adulta tão diretamente quanto possível.

Somente no período inicial do capitalismo, com o surgimento de uma grande classe média comercial, surgiu a noção de que as crianças deveriam ser segregadas do mundo adulto do trabalho – e das farras bacanais. Onde as atitudes ocidentais em relação à criação dos filhos haviam anteriormente se concentrado em uma concepção dos jovens como pequenos selvagens que precisavam ser civilizados, a burguesia moderna, influenciada pelos escritos de John Locke e Jean-Jacques Rousseau, passou a perceber as crianças como fundamentalmente inocentes – um estado que precisava ser preservado, protegido e celebrado.

Com a riqueza mais disseminada e o aumento da privacidade trazidos por uma crescente economia comercial, uma nova divisão surgiu na mente da classe média: uma separação entre a corrupta esfera pública e o abrigo protetor do lar. O novo ícone do Papai Noel ofereceu aos nova-iorquinos, norte-americanos e, eventualmente, o mundo inteiro uma figura em torno da qual ritualizar essa recém-descoberta domesticidade e criar novas gerações de pais que viriam a acreditar que suas memórias dos Natais da infância faziam parte de uma tradição atemporal.

Removendo a etiqueta de preço

O que não foi percebido como atemporal foi a revolução comercial que tornou tudo isso possível. As memórias de uma época mais simples eram frescas, se não inteiramente precisas. À medida que a indústria, a urbanização e a imigração aumentaram, também aumentou o desejo de pelo menos uma época do ano em que pudéssemos nos retirar para um mundo de artesanato pré-industrial, troca não monetária e laços familiares tranquilos. Nissenbaum escreve sobre a tensão entre a nova economia e o novo Natal:

Talvez a própria velocidade e intensidade com que esses rituais essencialmente novos foram reivindicados como tradições atemporais mostre o quão poderosa era a necessidade de manter a relação entre a vida familiar e uma economia comercial escondida – para proteger as crianças (e os adultos, também) de entender algo problemático com o mundo que eles estavam fazendo.

À medida que comerciantes recrutavam Saint Nick para promover suas lojas e produtos produzidos em massa, uma imagem antitética da oficina do Papai Noel tornou-se bem estabelecida: uma sem nenhum sinal de maquinário ou produção moderna, apenas ferramentas manuais e artesanato individual. Os presentes trocados em 25 de dezembro eram em sua maioria itens comprados em lojas; mas com as etiquetas de preço removidas e embrulhados, eles foram apresentados como existentes fora do nexo comercial.

Até mesmo a árvore de Natal, outra tradição folclórica aparentemente antiga que foi inventada no século XIX, “entrou pela primeira vez na cultura norte-americana como uma estratégia ritual”, escreve Nissenbaum, “projetada para lidar com o que já estava sendo visto […] como um feriado carregado de materialismo crasso – um feriado que produziu uma geração crescente de crianças gananciosas e mimadas.” A árvore de Natal tornou o presentear menos unilateral. A árvore genealógica se tornou o locus não apenas da surpresa e da gratidão, mas também da generosidade mútua, o centro de uma troca material “forjada fora do cadinho febril das relações de mercado.” O significado do Natal, de acordo com o ritual centrado na árvore, não reside no ganho material, mas na gratidão e na generosidade.

A temporada da luz

Nossos atuais rituais de feriados podem ser vistos, portanto, como uma dança entre o capitalismo e uma ambivalência cultural contínua em relação ao comércio. O mundo da produção econômica e da troca produz uma necessidade de escapar da nossa consciência do mercado – e o próprio mercado atende a essa demanda.

Se precisarmos que esse hiato anual seja mais espiritual, menos materialista, mais familiar e menos anônimo, a cultura comercial se adaptará, mesmo com soluções aparentemente não comerciais.

Aqueles que querem celebrar o solstício de inverno como o nascimento de seu salvador têm séculos de tradição atrás deles. Mas nunca foi assim que a maioria das pessoas comemorou a temporada, não importa o que nossa memória seletiva possa sugerir. A bebedeira nas ruas, agora restrita à véspera de Ano Novo, é uma tradição muito mais antiga, e uma que a Igreja procurou contrariar com sua celebração da Natividade. Um Natal religioso pode ser mais pacífico, mais admirável e certamente mais nobre, mas, no apelo à tradição, perde para formas mais antigas e populares de folia mesquinha.

Onde as autoridades religiosas tentaram e falharam em conter o barulho e a ameaça da temporada do solstício, o capitalismo moderno conseguiu, substituindo o carnaval de inverno com sua própria tradição inventada: o Natal doméstico, uma criação do século XIX que mesclava símbolos cristãos e pagãos em uma celebração centrada em torno de duas outras inovações históricas: a família moderna e a infância moderna.

Há milênios, as pessoas querem passar a parte mais sombria do ano comemorando de uma forma que diverge da rotina e das regras normais. Em uma era agrícola, isso significava beber e comer carne em demasia. Numa hierarquia social rígida, significava inverter as posições, fazendo com que os ricos servissem aos pobres. Em uma era comercial, onde mamãe e papai partem para trabalhos separados enquanto os filhos vão para a escola, significa passar as férias juntos no lazer, praticando uma forma de generosidade mútua que é ritualizada para obscurecer suas origens capitalistas.

Enquanto continuar a demanda por um hiato anual das regras normais, o mercado fornecerá o que for necessário para marcar a temporada, mesmo quando o que é necessário é a impressão de que de alguma forma transcendemos o mundo comercial que torna possível nosso Natal moderno.

Autor: B.K. Marcus

B.K. Marcus é editor colaborador da Foundation for Economic Education (FEE, “Fundação para Educação Econômica”).

Tradutor: Daniel Peterson

Esse texto é uma tradução da matéria originalmente escrita por B.K. Marcus em 21 de dezembro de 2015 para a FEE.

O texto original, em inglês, publicado sob a licença CC BY 4.0, pode ser conferido em:

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