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O mito das "raízes socialistas" do cristianismo

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Examine mais atentamente essas passagens em Atos. O arranjo “comunitário” era voluntário.

Há quase dois milênios, alguns dos primeiros seguidores de Cristo em Jerusalém se organizaram de um jeito que ainda suscita a alegação de que as raízes do cristianismo são socialistas, comunitárias ou até mesmo “comunistas”. Quando celebramos o nascimento de Jesus, devemos compreender que essa afirmação é espúria, se não blasfema.

Suas fontes são duas passagens do livro de Atos, do Novo Testamento, capítulo 2, versículos 44-45, que afirmam: “Todos os que criam estavam juntos e unidos e repartiam uns com os outros o que tinham. Vendiam as suas propriedades e outras coisas e dividiam o dinheiro com todos, de acordo com a necessidade de cada um.” Atos 4:32 declara: “Todos os que creram pensavam e sentiam do mesmo modo. Ninguém dizia que as coisas que possuía eram somente suas, mas todos repartiam uns com os outros tudo o que tinham.”

Muitos na esquerda argumentam que o ensino cristão deveria rejeitar a propriedade privada e endossar um sistema socialista de redistribuição de riqueza. Afinal, não foi isso o que os primeiros cristãos fizeram?

Examine mais atentamente essas passagens em Atos. O arranjo “comunitário” era voluntário. Não há compulsão nem menção à única instituição na sociedade que pode empregar a compulsão de forma legal, nomeadamente, o estado.

Atos 2:46 observa que esse grupo de cristãos primitivos “nas suas casas partiam o pão e participavam das refeições com alegria e humildade” (ênfase adicionada). Se ainda possuíam casas, alguns, pelo menos, claramente não venderam tudo. Aqueles que o fizeram trouxeram o dinheiro das suas vendas aos apóstolos, não a qualquer governo – romano ou judeu, secular ou religioso.

Cristãos vêem Deus como o criador de todas as coisas e, portanto, como o dono de todas as coisas. Os seres humanos são administradores da Criação, e somos chamados pelas Escrituras a fazer bom uso dela. É provável, neste sentido transcendente, que alguns dos primeiros cristãos pensassem que sua riqueza material não era, em última análise, deles.

De qualquer forma, o socialismo não é a partilha voluntária dos bens de alguém. Qualquer um pode optar por fazer isso sob a antítese do socialismo, o capitalismo. Na verdade, ocorre mais filantropia nas sociedades capitalistas do que nas socialistas, e os governos dos países capitalistas estão constantemente enviando “ajuda externa” aos regimes mais socialistas, e não o contrário.

O socialismo é mais propriamente entendido como a concentração do poder político com o propósito – por meio do uso da força – de redistribuir riqueza ou planejar uma economia. Além disso, seu histórico lamentável começa com os primeiros cristãos que escolheram praticá-lo.

O apóstolo Paulo alude pela primeira vez aos problemas financeiros entre o grupo de Jerusalém quando descreve uma conversa que teve com seus líderes – Tiago, Pedro e João. Paulo diz: “Eles nos pediram só uma coisa: que lembrássemos dos pobres das igrejas deles, e isso eu sempre tenho procurado fazer.” (Gálatas 2:9-10)

Aparentemente, a igreja de Jerusalém estava no topo da lista dos “pobres” porque Paulo atendeu ao pedido de Tiago, Pedro e João, coletando dinheiro das novas igrejas cristãs em Antioquia, Macedônia e Corinto para enviá-lo às “pessoas do povo de Deus em Jerusalém que estão necessitadas”. (Romanos 15:26)

Em outras palavras, os subsídios dos cristãos de Antioquia, Macedônia e Corinto estavam ajudando a sustentar a empobrecida igreja de Jerusalém. E alguns destes doadores cristãos não tinham quase nada com que viver, muito menos dar. Por exemplo, Paulo descreve como os cristãos macedônios eram “muito pobres” e ainda assim “fizeram tudo o que podiam e mais ainda”. (2 Coríntios 8:2-3). Quão desesperados deviam estar os cristãos em Jerusalém para confiar em irmãos e irmãs cristãos que viviam em tal “pobreza extrema”? Não se pode duvidar da sinceridade dos comunalistas, mas pode-se certamente questionar até que ponto eles compreenderam alguns dos ensinamentos de Cristo.

Apenas uma vez Jesus ordenou que alguém vendesse tudo, e foi quando um homem rico perguntou como poderia garantir a vida eterna. Para demonstrar onde o coração do homem realmente estava (o que Jesus certamente sabia), Jesus disse-lhe para vender tudo. O homem se recusou e foi embora (Mateus 19:16-22). Jesus nunca sugeriu que todos deveriam vender tudo, e certamente nunca apoiou a coerção socialista, dirigida pelo Estado, para conseguir isso.

Na verdade, na sua parábola dos talentos (Mateus 25:14-30), Jesus reserva o maior elogio para o homem cuja iniciativa ampliou a riqueza material, e nenhum elogio ao homem que nada fez para criar valor. A sua parábola dos trabalhadores da plantação de uvas (Mateus 20:1-16) proporciona uma defesa poderosa do contrato voluntário e da propriedade privada, e a sua parábola do bom samaritano (Lucas 10:25-37) enobrece o homem que ajuda o outro com os seus próprios recursos e a sua livre vontade. Se aquele samaritano tivesse dito à vítima desesperada na beira da estrada “espere que o governo apareça e te ajude”, provavelmente o conheceríamos hoje como “o samaritano inútil”.

O fato é que, embora alguns dos primeiros cristãos se organizassem de uma forma “comunitária”, a maioria não o fez. Nos 20 séculos seguintes, poucos cristãos escolheram o caminho comunitário, e a maioria dos que o fizeram rejeitaram-no quando ele inevitavelmente falhou. Os peregrinos de Plymouth, por exemplo, passaram fome até que o governador William Bradford abraçou a propriedade privada. As experiências socialistas utópicas na América do século XIX, num total de mais de 100 e muitas vezes inspiradas por visões errôneas da ética cristã, expiraram todas em poucos anos.

Imagine se Jesus voltasse hoje e, falando para uma plateia lotada em um grande teatro, perguntasse: “o que vocês fizeram para ajudar os pobres?” Somente os superficiais ou iludidos ficariam impressionados se alguém levantasse a mão e dissesse: “votei nos políticos que disseram que cuidariam disso”. 

Em vez de seguir o exemplo de Bernie Sanders, Karl Marx, ou mesmo daqueles primeiros comunalistas de Jerusalém, quem é cristão – e até quem não é, também – deveria lembrar do que o apóstolo Paulo disse em 2 Coríntios 9:7: ”Que cada um dê a sua oferta conforme resolveu no seu coração, não com tristeza nem por obrigação, pois Deus ama quem dá com alegria.”

Autores: Lawrence W. Reed e Burton W. Folsom

Lawrence W. Reed é o presidente interino da Foundation for Economic Education (FEE, “Fundação para Educação Econômica”), tendo atuado anteriormente por quase 11 anos como presidente da FEE (2008-2019).

Burton Folsom, Jr. é professor de história no Hillsdale College e autor (com sua esposa, Anita) do livro FDR Goes to War. Ele é membro da Rede de Docentes da FEE.

Tradutor: Daniel Peterson

Esse texto é uma tradução da matéria originalmente escrita por Lawrence W. Reed e Burton W. Folsom em 24 de dezembro de 2023 para a FEE.

O texto original, em inglês, publicado sob a licença CC BY 4.0, pode ser conferido em:

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