Cabeça Livre

O rei do sacrifício

Parte 3-e-meia da série do historiador Rene Girard.

Nota aos leitores: este material não se encaixava muito bem nas Partes 1, 2 ou 3, mas tem algumas ideias relevantes e prepara para a Parte 4, que trata da transcendência do padrão do bode expiatório.

As vítimas dos sacrifícios são representantes da desordem, da poluição e da maldade. Em tempos normais, elas vêm de várias minorias marginais e sem poder. Em tempos revolucionários, a classe de sujeitos sacrificais se volta para aqueles que se diferenciam por estarem acima. O derramamento de sangue das revoluções na França, Rússia, China, Camboja e outros lugares, nas quais a liquidação das velhas elites superou qualquer necessidade prática de poder, ecoou um precedente antigo e pode muito bem ser repetido se permanecermos cegos para sua motivação ritual.

Evidências da literatura e da antropologia sugerem que, em muitas sociedades, a vítima original do sacrifício era o rei. Como o responsável pelo bem-estar da nação, se alguma calamidade acontecesse, o rei seria a escolha natural para representar a ordem-transformada-em-caos. Em alguns lugares, ele seria obrigado a cometer todo tipo de atos proibidos para concentrar o veneno dentro de si mesmo. Se o infortúnio atingisse o reino, seu sacrifício removeria o veneno, apaziguaria os deuses e restauraria a harmonia no reino. Ou seu oportuno sacrifício poderia evitar que calamidades como inundações, fomes ou pragas acontecessem.

Pode-se imaginar que o rei nem sempre se entusiasmou com o ritual de regicídio. Ele pode ter sugerido: “Não me sacrifiquem, vamos sacrificar esse criminoso aqui”. Eventualmente, substitutos foram encontrados, como prisioneiros ou crianças, ou animais (um bode expiatório literal, por exemplo), ou vários tipos de efígies. Ou um rei temporário especial reinaria em devassidão desenfreada durante um festival, que terminaria com seu sacrifício (e, portanto, a remoção simbólica dos seus pecados da sociedade). O rei do carnaval muitas vezes tomava a forma de um tolo ou um bufão, alguém para exibir culpas, fraquezas e falhas humanas de forma exagerada. Não se pode deixar de admirar as forças psicossociais latentes que impulsionaram Donald Trump ao poder e depois o derrubaram novamente. Sua personalidade se adequava perfeitamente ao papel, prenunciada por seu personagem de lutador livre profissional, de rei do carnaval. Excesso de ostentação faz parte da descrição do cargo.

O impulso perene do ritual regicida também emergiu recentemente no Burning Man, cujo rei – uma espécie de efígie – perece por imolação em sua conclusão. Outro vestígio fraco dessa prática são o rei e a rainha do baile, embora eles não sejam, na cultura norte-americana contemporânea, assassinados ritualmente. Ou são? Eles são, de fato, os alvos favoritos de fofocas. Um impulso primordial espreita na psique humana para derrubar nossos governantes; daí nosso fascínio por escândalos de celebridades. Aqui temos algo mais profundo em ação do que a raiva proletária deslocada ou o instinto revolucionário dos oprimidos. É uma rebelião contra a ordem em si, e uma fome da renovação que vem da descida ao caos.

Isso não é um bom presságio para as elites de hoje. Quaisquer que sejam suas falhas, a tecnocracia. Bilionários e lideranças políticas, são mais criações de um sistema do que seus arquitetos. Eles desempenham os papéis que nossos sistemas e paradigmas reinantes projetam para eles. Eles estão hoje também em conformidade com os requisitos de outro papel mais antigo: o do rei malvado, apto para o sacrifício. Para citar Heim: “Eles são acusados ​​dos piores crimes que o grupo pode imaginar, crimes que, por sua própria enormidade, podem ter causado a terrível situação que a comunidade agora vive”. Não apenas as pessoas naturalmente imputam tais crimes às suas elites, mas as elites parecem inexoravelmente atraídas pela depravação. Poder e depravação parecem andar de mãos dadas; quando estoura um escândalo, raramente ficamos surpresos. Uma versão moderna do arquétipo do rei malvado é encontrada na teoria de que um culto satânico permeia a elite poderosa, que comete atos indescritíveis em privado enquanto planejam escravizar ainda mais o mundo. Qualquer que seja a verdade objetiva por trás dessa mitificação, nossos líderes estão, ao menos na percepção, começando a assumir os atributos necessários do anti-rei, para servir como símbolos da poluição concentrada que pode ser extirpada do corpo político.

“Outros proclamavam em voz alta que o espírito maligno havia sido lançado sobre a população pelos próprios sacerdotes.”1 No momento em que escrevo [setembro de 2021], o muro da negação está desmoronando em torno do que parecia provável para muitos observadores desde o início: que o SARS-Cov-2 é um vírus geneticamente modificado. No ano passado [2020], nos garantiram que essa era uma “teoria da conspiração desmentida”, e sofremos censura por abordar a ideia nas mídias sociais. Vimos cientistas renegados como Judy Mikovits ridicularizados por alegações sobre pesquisas de ganho de função – alegações que a grande mídia finalmente está transmitindo para entreter seus telespectadores. Agora vemos sinais da raiva que a traição gera, e as imputações dos “piores crimes que o grupo pode imaginar”. Um quarto do público acredita que o vírus foi deliberadamente lançado.2 Milhões também pensam que as vacinas são uma tecnologia de eugenia furtiva e acreditam na teoria acima mencionada de que um culto satânico de tráfico humano controla o mundo. Esses mitos são difíceis de provar ou falsificar. Do ponto de vista girardiano, sua factualidade objetiva não importa, assim como não importa se, como em algumas sociedades, o rei sacrificial realizou os atos tabus que ele deveria realizar, ou, como em outras sociedades, ele realizou substitutos simbólicos desses mesmos atos. O que importava era que ele ocupava o papel mítico.

Se eles são culpados de alguns, todos ou nenhum dos atos hediondos que lhes são atribuídos, quando derrubarmos nossas elites em nome da justiça, estejamos cientes de que algo mais selvagem e primordial do que a justiça está sendo servido. Algumas vítimas de sacrifício podem saciar a sede da multidão, mas isso não trará mudanças sistêmicas. De fato, o rito do sacrifício é o que mantém os sistemas no lugar.

Lembremo-nos disso nos próximos tempos. A derrubada de estátuas por manifestantes pode muito bem prefigurar a coisa real, um paroxismo de violência popular contra as elites que parecem ter nos traído. Especialmente nos Estados Unidos, nossas instituições governamentais flutuam sobre um poço de lava fervilhante de ressentimento que requer apenas um incidente desencadeador para entrar em erupção. Por décadas, ele tem sido direcionado principalmente para dentro e de um lado contra o outro, como demonstram os níveis crescentes de depressão, doenças crônicas, vícios em drogas, divórcio, suicídio e conflitos civis. O controle da informação pelas instituições segura, por enquanto, esta fúria vulcânica, mas a ordem social é precária. Qualquer número de desastres ou revelações poderia quebrar o contêiner do controle de informações. Mas se tudo isso acontecer para se vingar das elites, pouco mudará.

A autocracia da França pré-revolucionária foi seguida pela autocracia de Napoleão. A autocracia da Rússia czarista foi seguida pela de Stalin. As liquidações das elites abriram caminho para que novos atores ocupassem os mesmos papéis. Podemos fazer melhor do que isso. Chegou a hora de um tipo diferente de revolução.

Para aqueles que equiparam “algo deve ser feito” à violência, não se vingar parece inação. Certamente, aqueles que falsificaram dados, censuraram dissidências, suprimiram tratamentos baratos e manipularam o público deveriam ser removidos de posições de confiança. Mas será que deveríamos replicar o antigo padrão de violência sacrificial, que nunca olha para o contexto desses atos, mas sim transfere simbolicamente o veneno do sistema para os seus funcionários?

Não precisamos. Podemos transcender o instinto, o “algo mais profundo” mencionado acima, que leva os seres humanos à vingança, à punição e à violência. Será que isso é realmente um instinto, afinal? Será que poderíamos reconstruir a sociedade em torno de outros instintos: os instintos de compaixão, de perdão e de reconciliação?

Autor: Charles Eisenstein

Charles Eisenstein é palestrante, ativista e escritor focado nos temas da civilização, consciência, dinheiro e evolução cultural. Formado em Matemática e Filosofia na Universidade de Yale em 1989. Autor dos livros Sacred Economics (Economia Sagrada), Ascent of Humanity (Ascensão da Humanidade) e The More Beautiful World Our Heart Know Is Possible (O Mundo Mais Bonito Que Nosso Coração Sabe Ser Possível). Charles hoje mora na Pennsylvania e escreve para o The Guardian, entre outros jornais e revistas.

Tradutor: Daniel Peterson

Esse texto é uma tradução do ensaio originalmente escrito por Charles Eisenstein em 12 de setembro de 2021.

O texto original, em inglês, pode ser conferido em:


Notas

  1. Da alegoria na Parte 2, O fascismo e o antifestival

  2. Não é totalmente implausível – neocons desonestos no governo Trump podem tê-lo usado como uma arma biológica contra a China, seu inimigo número um, e o Irã, cuja elite política na cidade sagrada de Qom foi atingida logo depois. 

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