Indo além da violência redentora
Este ensaio é a parte final de uma série:
- Parte 1: A morte do festival
- Parte 2: O fascismo e o antifestival
- Parte 3: A moralidade da manada e os não-vacinados
- Parte 3-e-meia: O rei do sacrifício
O objetivo desta série de ensaios é iluminar um caminho em direção à transcendência do antigo padrão que Rene Girard chamou de violência sacrificial, em que a sociedade descarrega sua raiva, sua ansiedade e suas rivalidades em uma classe de vítimas desumanizadas. Essa força latente aumenta em tempos de estresse social, como em uma crise econômica, fome, peste ou convulsão política. Então os poderosos da elite podem sequestrá-la para fins fascistas.
Na Parte 3 desta série, examinei a estigmatização e o ostracismo dos não vacinados como um exemplo atual conspícuo da dinâmica da manada em ação. No entanto, a dinâmica da manada transcende em muito a questão da vacina e, de fato, opera entre os dissidentes da vacina também, cujos padrões de pensamento às vezes refletem os da ortodoxia: nós somos os mocinhos, eles são os bandidos. Nós somos racionais, eles são irracionais. Estamos conscientes, eles estão dormindo. Nós somos éticos, eles são corruptos. Nem este nem qualquer movimento dissidente está isento do veneno sistêmico da incivilidade que agora permeia o corpo político.
Superioridade moral, ridículo, xingamentos e desprezo são precedentes necessários para o bode expiatório girardiano. Também são poderosas ferramentas retóricas e psicológicas para criar solidariedade entre as tropas. Implicam dizer: desvie-se das nossas crenças e nós ridicularizaremos você também. Humanos sabem como se instintivamente o perigo que se segue ao ridículo e à humilhação ritual por parte do grupo. É um padrão ancestral. Primeiro a multidão ridiculariza e zomba da vítima, depois a mancha com merda. Ela se torna desprezível, repugnante. Então, as pedras voam.
Tais táticas podem disciplinar as fileiras e intimidar uma parte dos que estão em cima do muro a cooperar. Lembro-me, antes de tomar consciência dessa tática, de me sentir superior quando lia algo que desprezava o errado (ou seja, aqueles com os quais o autor discordava). Abaixo da superioridade estavam os sentimentos de inclusão e segurança. Na verdade, posso até concordar para me sentir superior, incluído e seguro. A tática equivale a: “Você quer ser uma boa pessoa e não desprezível? Então concorde comigo!”
A tática é contraproducente ao abordar aqueles que mantêm opiniões opostas firmes. O desprezo, corretamente visto como um ataque, leva-os a contornar as carroças e contra-atacar com a mesma arma. Muitos dos indecisos também são repelidos, pois percebem algo operando além da razão e do desejo genuíno de buscar a verdade por meio do diálogo. É uma luta; mais amplamente, é uma guerra. Na guerra, ambos os lados servem à vitória, não à verdade, embora possam fingir o contrário.
Um ditado diz: “na guerra, a primeira vítima é a verdade”. E a mentira primordial da guerra é a mesma da violência da manada, do pogrom e da caça às bruxas: que certas pessoas não são totalmente humanas. Enquanto perpetuarmos essa mentira, a humanidade continuará o trágico padrão histórico. Também permaneceremos confusos em nossa construção de sentido pessoal e coletiva.
Este último ponto pode não ser óbvio. Então, correndo o risco de provocar o censor, usarei a controvérsia da vacina para ilustrar como a desumanização nos cega para a verdade. Do lado dos céticos das vacinas, a ideia de que os virologistas e outros pesquisadores são ignorantes, corruptos, delirantes ou incompetentes impede os céticos de se envolverem com a substância do conhecimento científico mainstream. Eles podem aceitar credulamente teorias especulativas ou facilmente desmentidas, falhando em distingui-las de afirmações mais robustas. Isso semeia confusão nas fileiras.
Aqui está um exemplo: o boato, comum em alguns guetos da comunidade cética em relação às vacinas, de que “nenhum vírus para a Covid foi isolado e comprovadamente existe de acordo com os postulados de Koch”. Embora tecnicamente isso seja verdade, representa uma demanda impossível. Os postulados de Koch foram formulados para bactérias, que podem (muitas vezes) ser cultivadas em um meio inanimado e, portanto, “purificadas”. Vírus podem ser cultivados apenas em células vivas; portanto, qualquer amostra com partículas virais também conterá restos celulares, incluindo DNA e RNA não virais. É por isso que métodos combinatórios são usados para estabelecer o genoma viral. Para acreditar que centenas de milhares de virologistas passaram os últimos cinquenta anos estudando uma alucinação, é preciso pensar que são tolos corruptos incapazes de ver o óbvio.1 Vê-los dessa forma impede a comunicação, o aprendizado e a busca mútua pela verdade. Também desvia a atenção de desafios mais legítimos e sutis para paradigmas convencionais de virologia e da ciência das vacinas.2 Cientistas ortodoxos, alimentados com desafios ignorantes, endurecem seus paradigmas contra outros mais legítimos.
Manchando todo o movimento cético com o pincel largo oferecido por seus membros mais irracionais, o lado pró-vacina muitas vezes assume que os céticos da vacina são um bando de fanáticos raivosos que se preocupam apenas com sua própria “liberdade” às custas da saúde pública. Quanta atenção eles darão, então, aos denunciantes, aos cientistas dissidentes e às histórias horríveis de lesões causadas por vacinas que podem não chegar aos bancos de dados oficiais?
Eu vi uma ilustração gráfica dessa surdez hoje enquanto passava o olho em alguns canais do Instagram e do TikTok de pessoas que alegam ter sido lesionadas por vacinas. Elas relatam coisas como semanas de tremores que começaram logo após a vacinação, paralisia da cintura para baixo, derrames, perda de fala e outros sofrimentos debilitantes. Muitas vezes eles relatam que seus médicos dizem que é coincidência e não tem nada a ver com a vacina. Eles parecem sinceros para mim – mas certamente não para muitos. As sequências de comentários estão cheias de ódio. “Falso”, “palhaço” e “mentiroso” são alguns dos comentários mais suaves. “Louco.” Ameaças de que o conselho tutelar levará seus filhos embora. Injúrias misóginas (a maioria das publicações são de mulheres). Sim, é possível que essas pessoas estejam fingindo, mas como os comentaristas têm tanta certeza? Como o Instagram tem tanta certeza de que essas postagens são “informações falsas prejudiciais” quando as derruba?3 Além disso, uma vez que essa supressão é institucionalizada, como podemos, como um coletivo, saber se os danos da vacina são de fato generalizados? A falha na comunicação nos mantém no escuro.
A censura, a desinformação e a propaganda têm um aliado crucial sem o qual nunca seriam eficazes. O aliado é a psicologia da manada e o hábito social da desumanização. Essas táticas funcionam apenas quando estamos prontos para ver os outros como a propaganda diz que devemos, e não tentamos descobrir por nós mesmos ouvindo-os de fato.
O inimigo em nosso meio
Não surpreende que a tendência a desumanizar os outros nos torne vulneráveis à propaganda. Quando desumanizamos, não estamos na verdade (uma vez que a verdade é que cada ser humano é uma alma divina, é a vida propriamente dita, é um sujeito que sente e pensa com uma experiência única do mundo). Quando não estamos na verdade, somos vulneráveis às mentiras.
Também nos tornamos vulneráveis à divisão interna e à paranoia. Aqueles sintonizados com vilões e bandidos em todos os lugares são rápidos em vê-los em suas próprias fileiras. Então, tudo o que é preciso para destruir um movimento dissidente é começar a acusar certos membros de serem infiltrados, traidores ou “oposição controlada”. Essas acusações exploram rivalidades existentes – “Ah ha! Você discorda de mim porque você é um ________.” Qualquer movimento que veja o mundo através de uma lente polarizadora é ele mesmo propenso a divisões.
Nada disso é para negar a existência de infiltrados e informantes. Os serviços de inteligência têm uma longa e documentada história de infiltração e tentativa de destruir movimentos dissidentes (como os movimentos de direitos civis, ambientais e antiglobalização). Sem dúvida, eles estão fazendo o mesmo hoje com os dissidentes da política da Covid. Minha mensagem aqui não é para confiar automaticamente em todos. A confiança pode vir de uma nova base: confio naqueles que demonstram vontade de liberar sua identidade como boa e correta.
Não neguemos também que existe corrupção, inconsciência, ignorância e irracionalidade. No entanto, nenhum ser humano pode ser reduzido a qualquer um desses traços sem obliterar sua humanidade e, assim, violentar a verdade. Em última análise, a violência à verdade leva a outras formas de violência. Reduzir alguém a um rótulo degradante curto-circuita a questão que é a única libertação da humanidade na atual conjuntura: como é ser você?
A maior crise que a humanidade enfrenta hoje não são as vacinas ou seus resistores; não é doença infecciosa, doença crônica, superpopulação ou armas nucleares. Não é nem mesmo a mudança climática. A maior crise hoje é a crise da palavra. É uma crise de acordo. É uma crise babeliana de comunicação. Com coerência entre nós, nenhum outro problema seria difícil de resolver. Tal como está, os prodigiosos poderes da criatividade humana anulam-se mutuamente. A matriz cristalina de nossa co-criação explodiu em cacos. Por quê? Não é por falta de habilidade em se comunicar. É de um hábito de percepção, uma forma de ver o outro que nos torna menos do que somos.
Antes de prosseguir, permita-me esclarecer que compaixão não é o mesmo que capitulação. Comunicação não é o mesmo que compromisso. Pacifismo não é o mesmo que passividade. Ver a divindade de outra pessoa não significa deixá-la seguir seu caminho. Ouvir outros pontos de vista não equivale a silenciar os próprios.
Ao contrário do que teme o guerrilheiro, humanizar o adversário nos torna mais eficazes, não menos, em servir aos objetivos que devem, em última análise, unir-nos todos: cura, justiça e paz. Mesmo que se trate de uma luta, a pessoa lutará melhor livre de ilusões sobre o inimigo.
Para dar um exemplo totalmente aleatório, aham, digamos que eu queira parar o plano tecnocrático, liderado por Bill Gates, de monitorar, injetar, rastrear e controlar todos os humanos na Terra e alimentar seus dados biométricos, dados de movimento e dados fisiológicos em tempo real em um banco de dados centralizado que pode, então, emitir privilégios e restrições que mantêm todos seguros. Para impedir que isso aconteça, seria melhor eu entender por que isso está acontecendo. Se eu disser a mim mesmo que é porque Bill Gates & Co. são demônios tagarelas empenhados em fazer os outros sofrerem, existem muitas coisas que eu não verei. Estarei cego para os motivos pelos quais essas pessoas são tão apaixonadas pela tecnologia, pra começo de conversa. Não vou olhar para a mitologia implícita que iguala o progresso ao controle. Não vou olhar para os padrões culturais de dominação. O tempo todo, estarei lutando contra uma caricatura e não contra o próprio inimigo.
Pelo que sei, Bill Gates acredita fervorosamente que ele está trabalhando para o bem da humanidade. Ele está convencido de sua identidade pública como filantropo – um amante da humanidade. Seu coração incha com uma certeza justificada. Ele tem justificativas prontas para certas coisas que fez que até ele sabe que foram erradas. Algumas coisas, talvez ele apenas prefira não pensar a respeito. Em suma, talvez ele não seja tão diferente de você ou de mim. Eu posso e de fato rejeito totalmente a visão dele do futuro; portanto, acho que ele é um indivíduo perigoso. Mas um perverso? Eu não posso saber isso. Por que eu teria tanta certeza? Condicionado pelo mito hollywoodiano do Vilão, posso ser tentado a vê-lo dessa forma. Mas não vou me opor a ele de forma mais eficaz se estiver ciente da sua psicologia real, ou pelo menos disposto a procurá-la? Para fazer isso, porém, eu tenho que estar disposto a vê-lo como completamente humano. Isso não significa ser mole e deixá-lo fazer o que quer. Muito pelo contrário. Seremos mais eficazes, não menos, em enfrentar a opressão de qualquer tipo quando entendermos a natureza dos nossos opressores e pararmos de atribuir erroneamente suas ações ao “mal”. Ao fazê-lo, abrimos a possibilidade de que eles também nos reumanizem, e que algo diferente da vitória de um grupo sobre outro determinará o futuro.
Isso ainda se aplica mesmo que algumas pessoas sejam más. Certamente existem alguns indivíduos verdadeiramente psicopatas entre as elites, mas mesmo pessoas normais, sob a embriaguez da ideologia e do poder, podem executar políticas hediondas. Por outro lado, não se pode presumir que só porque a maioria dos cientistas e formuladores de políticas são pessoas decentes, eles são imunes ao contágio da psicologia da manada. A psicologia da manada organiza crenças e ações em torno dos seus ditames, gerando infinitas racionalizações, justificativas e pretextos. Pessoas boas podem fazer coisas más, ao mesmo tempo em que estão firmemente convencidas da sua corretude. Para falar com essas pessoas, temos que aprender a questionar o assunto da sua corretude sem negar sua decência.
Agora não é hora de objetar e manter nossas cabeças baixas. É hora de se levantar e falar, e nossas palavras serão mais poderosas se falarmos com os seres humanos de verdade por baixo das nossas suposições sobre eles.
Transcendência do Ocidente
Girard argumenta que o arco de violência recíproca aliviado pela unanimidade violenta gerou os rituais, a cultura e a religião humanos. No entanto, é na religião que podemos encontrar nossa libertação do padrão, da distração da energia revolucionária rodada após rodada de bodes expiatórios.
Vou oferecer um exemplo do Oriente e outro do Ocidente. Primeiro, do Ocidente.
A história de Cristo, à primeira vista, parece se encaixar no molde da vítima sacrificial, mas na verdade ela o quebra. O bode expiatório depende de associar a vítima a poluição de algum tipo, para que a poluição possa então ser removida. O ensino cristão insiste na impecabilidade de Jesus, sua pureza e divindade. Diante de uma multidão rebelde e governando uma terra despedaçada por tensões sociais, Pôncio Pilatos sabia o que fazer: oferecer uma vítima à manada. A paz que se seguiria provaria a justiça da matança. Mas a história de Jesus não se desenrola como de costume. Ao contrário da maioria dos mitos (Batman subjuga o Coringa e salva Gotham; Superman mata Lex Luthor e salva o mundo; os Vingadores matam Thanos e salvam o universo, políticos nos salvam de terroristas e ignorantes), nesta história, a vítima é o epítome da inocência. Sua inocência proclama que a culpa é irrelevante para os apetites da manada. Portanto, a inocência de Jesus revela a inocência de todos, mesmo dos culpados, que já foram suas vítimas. Pois, como diz Heim, “qualquer ser humano pode ser plausivelmente feito de bode expiatório e nenhum humano pode prevalecer quando a comunidade coletiva se volta contra ele”.
O perdão é o ensino que define o cristianismo. Bem entendido, o perdão não é um tipo de indulgência – você é mau, mas eu o perdôo de qualquer forma. O perdão vem do lampejo de compreensão: “Se eu estivesse na totalidade da sua situação, poderia muito bem ter feito o que você fez”. Em outras palavras, vem de um sentido reconhecimento da nossa humanidade comum. Esse mesmo entendimento é o que evita o julgamento. Algumas das imagens mais poderosas nos Evangelhos são sobre perdão e julgamento. Jesus, na cruz, diz de seus algozes: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.”. Não é “Pai, perdoa-lhes, porque o Senhor é um Deus bacana e acredita em segundas chances, então, por favor, pega leve com eles”.
Os horrores da condição humana não podem ser atribuídos a psicopatas espalhados pela Terra. A soma total de milhões de intenções perfeitamente boas também termina em tragédia. Por quê? Porque não sabem o que fazem. Na cena da crucificação, o que não sabem é que estão crucificando um homem inocente. E é sempre assim quando vilanizamos alguém. Mesmo que sejam culpados de um crime, geralmente não são culpados de todos os atributos desumanizados que lhes são atribuídos no processo de sacrifício.
É da natureza da religião organizada que suas instituições tendem a encenar o exato oposto dos seus princípios esotéricos centrais.4 Tanto é assim que o cristianismo não tem rival em julgar, condenar, desumanizar e fazer bodes expiatórios. Essa história é fácil de ver: a Inquisição, a caça às bruxas, a escravização de africanos, o genocídio dos povos indígenas e a subjugação das mulheres, tudo isso aconteceu sob a sanção oficial da Igreja. No entanto, os ensinamentos originais ainda nos chamam para a transcendência de tais coisas. Mark Heim diz:
A violência redentora – o tipo de violência que alega ser para o bem de muitos, ser sagrada, ser o fundamento misterioso da própria vida humana – sempre pretende ser o meio de superar o pecado (remover a poluição, punir o transgressor que trouxe o desastre para a comunidade). O pecado que caracteristicamente afirma superar é a ofensa do bode expiatório, o crime que a vítima cometeu. Mas nos relatos da Paixão o pecado em vista é o dos perseguidores. Não é o pecado de um que prejudica muitos, mas o pecado de muitos contra um. Nos relatos da Paixão, a violência redentora se apresenta clara e inequivocamente como ela mesma o pecado que precisa ser superado.
Uma vez que a construção da violência redentora esteja completa, é improvável que a mera restrição a detenha. Devemos começar mais cedo e desfazer seus pilares. Devemos interromper hábitos de desprezo, fofocas venenosas, condenação, patologização psicológica, xingamentos e outras formas de desumanização. E devemos parar de ver o mundo em termos de uma luta. A luta, a guerra, é uma lente que revela pouco e obscurece muito. Ele lança a realidade em tons familiares – os tons de preto e branco, nós e eles, bem e mal. Essa imagem é familiar, viciante até. Mas para muitos de nós não é mais confortável e não parece mais verdade. Em parte é futilidade, em parte é exaustão que nos leva a nos desengajar do debate, da campanha, da cruzada. Dessa exaustão, esgotamento e rendição, nascem novas possibilidades.
A rendição não significa capitulação para o outro lado. É desistir de ver em termos de lados e enquadrar questões em termos de quem ganha. É servir à verdade e não à vitória. A mentira por trás do julgamento é “Se eu fosse você na totalidade da sua situação, teria feito diferente”. Mas você realmente sabe disso? Ou esse julgamento é baseado em uma mentira para si mesmo sobre o que você sabe?
Transcendência do Oriente
As tradições religiosas do Oriente produzem frutos semelhantes de uma árvore diferente. A árvore é a dissolução de rígidas distinções binárias, especialmente entre o eu e o outro. O Dao de Jing (Tao Te Ching), por exemplo, começa com uma afirmação sobre a inexpressibilidade da verdade absoluta e, em seu segundo verso, descreve a dependência mútua e o surgimento dos opostos. Mas aqui vou invocar o princípio budista da interexistência.
A interexistência diz que existência é relação. Não é apenas que dependemos uns dos outros, das florestas tropicais, do sol, da água e do solo para sobreviver. É que eles são parte do nosso próprio ser. Assim, se uma floresta tropical é derrubada, ou o pequeno bosque de árvores perto da sua casa, algo de você também morre. É por isso que os eventos que acontecem hoje na Terra doem tanto. Eles estão acontecendo com cada um de nós.
A interexistência diz que os lados de fora e de dentro se refletem e se contêm. Um país que visita a violência no mundo sofrerá violência doméstica. Uma nação que prende milhões de seus cidadãos não pode ser livre. Nenhuma pessoa pode ser totalmente saudável em um mundo doente. E as coisas que mais condenamos nos outros vivem de alguma forma dentro de nós mesmos. O reverenciado professor Thich Nhat Hanh transmite esse princípio de forma eloquente em seu poema “Chamem-me pelos meus verdadeiros nomes”. Eis algumas estrofes:
Eu sou a criança em Uganda, só pele e osso,
minhas pernas tão finas como varas de bambu,
e sou o comerciante de armas, que vende armamento letal para Uganda.Eu sou a menina de doze anos, refugiada em um pequeno barco,
que se atira no oceano depois de ser estuprada por um pirata do mar,
E sou o pirata, meu coração ainda incapaz de ver e amar.Eu sou um membro do Politburo, com muito poder em minhas mãos,
E sou o homem que tem que pagar sua “dívida de sangue” para o meu povo,
morrendo lentamente num campo de trabalho forçado.Minha alegria é como a primavera, tão cálida que faz as flores se abrirem por toda a Terra. Minha dor é como um rio de lágrimas, tão vasto que enche os quatro oceanos.
Por favor, me chame pelos meus verdadeiros nomes,
para que eu possa ouvir todos os meus gritos e risadas de uma só vez,
para que eu possa ver que minha alegria e minha dor são uma só.Por favor, me chame pelos meus verdadeiros nomes,
para que eu possa despertar,
e então a porta do meu coração possa ser deixada aberta,
a porta da compaixão.
Se quisermos transcender a condição humana como a conhecemos, temos que começar a realmente seguir os apelos de grandes mestres como Thich Nhat Hanh. Os “verdadeiros nomes” pelos quais ele quer ser chamado incluem meu nome e o seu nome. Localizando o mal nos outros, depois destruindo-os na esperança de destruir o mal, banimos para o inconsciente as partes de nós mesmos projetadas em nossos inimigos. Lá, essas sombras se multiplicam, infiltrando a vida de dentro até o dia em que assumem o comando em uma forma de violência.
A “porta da compaixão” é a dissolução das barreiras que separam. Há verdade em “eu sou a menina de doze anos”, “sou o pirata”, “sou o comerciante de armas”. Também há verdade em “eu não sou nenhum deles”, mas enquanto a última verdade é continuamente reforçada pelas ideologias, sistemas e economia modernos, a verdade da não separação se perde. É hora de recuperá-la. Isso significa que deixamos piratas e mercadores de armas continuarem a exercer seu comércio? Claro que não. Mas não depositamos sobre eles todos os vários males que podemos imaginar e esperamos limpar o mundo do mal limpando o mundo dos piratas.
Eu gostaria de pedir aos partidários de todos os lados das questões do nosso tempo que mudem sua lealdade. Não para o outro lado, mas da vitória para o amor. Você pode acreditar que sua causa, por exemplo a causa pró-vacina ou a causa antivacina, é precisamente o amor em ação. E talvez seja. No entanto, se você a qualquer momento notar que seu lado está colocando o ódio a serviço da causa, você sabe que a principal lealdade é à vitória.
Um lado pode realmente vencer a batalha incitando repulsa aos vilões do outro lado e pintando-os como demônios, mas terá aumentado o nível de repulsa no mundo, e a sociedade ficará ainda mais vulnerável à manipulação e à violência.
Você abraça a cura acima da vitória? Você está disposto a aceitar uma resolução em que a sociedade cura, mas os malfeitores nunca são punidos e você nunca é vingado? Onde você nunca tem a satisfação de ter se provado certo o tempo todo? Onde nenhum dos seus oponentes jamais se arrepende do que fez? Onde você mesmo pode ter que tolerar seu próprio erro em algo que você estimava?
O Anel do Poder
Eu estava recentemente ouvindo uma leitura maravilhosa de O Senhor dos Anéis de J. R. R. Tolkien com meu filho Cary. No livro, Boromir sugere usar o poder do Anel contra o senhor das trevas Sauron. Não, aconselha Gandalf. Se fizermos isso e vencermos, quem empunhar o Anel se tornará o novo lorde das trevas, porque é totalmente maligno. Alguém então sugere esconder o anel, mas Gandalf diz que não, ele será encontrado novamente, e estamos buscando a vitória sobre o mal não apenas no nosso tempo, mas também no futuro.
Conceda-me esta analogia. O Anel é a desumanização. É assim que os poderes das trevas governam esta terra: eles nos induzem a desumanizar uns aos outros. É, de fato, uma arma poderosa, e podemos de fato voltá-la contra nossos governantes e derrubá-los. Mas não é difícil imaginar como seriam os novos governantes, tão certos de que estão certos, tão certos da maldade daqueles que se opõem a eles, tão experientes nas artes do ridículo e da zombaria, rindo de caricaturas degradantes dos seus oponentes.
O portador do Anel diz: “junte-se a mim na humilhação das pessoas más”. Ele invoca o poder da manada e o lança em seus oponentes. Tudo por uma boa causa, a causa da liberdade, a causa da justiça, para ser usado apenas até que o bem prevaleça no final. Infelizmente, ele alimentou o próprio monstro que procura derrotar. Ele sempre vai temê-lo. Ele procurará não dissolver a manada, mas direcioná-la, para que não se torne sua próxima vítima sacrificial. O anel devora seu portador.
Em vez disso, lancemos o Anel de volta ao fogo de onde veio. Como? Por meio de bilhões de interações cotidianas, no discurso público e privado. Há outro instrumento que podemos manejar que é maior que a desumanização. Podemos chamá-lo de amor. Tomando muitas formas, baseia-se na verdade da humanidade divina de cada um (o Cristo) e nossa inseparabilidade fundamental (interexistência). Pode assumir a forma de cortesia, humor ou razão. Pode expressar raiva sem ódio, responsabilidade sem culpa e verdade sem superioridade moral. Isso abre os outros para ouvir: sentindo que não estão sob ataque, eles sentem menos necessidade de se defender. Ao colocar a conexão à frente do convencimento, ele tem o incrível poder de mudar mentes com muito mais eficácia do que qualquer ataque frontal de evidência e lógica. Para empunhar este instrumento, devemos estar dispostos a sermos transformados nós mesmos – essa disposição é em si um convite poderoso. Sem ela, que razão você tem para esperar que a mente de alguém mude? Este é o tipo de humildade que resulta de ver os outros em sua plena humanidade. Por meio dele podemos recuperar o poder da palavra, o poder do acordo, o poder da coerência. Mantendo-nos sagrados um ao outro, faremos um templo desta terra.
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Autor: Charles Eisenstein
Charles Eisenstein é palestrante, ativista e escritor focado nos temas da civilização, consciência, dinheiro e evolução cultural. Formado em Matemática e Filosofia na Universidade de Yale em 1989. Autor dos livros Sacred Economics (Economia Sagrada), Ascent of Humanity (Ascensão da Humanidade) e The More Beautiful World Our Heart Know Is Possible (O Mundo Mais Bonito Que Nosso Coração Sabe Ser Possível). Charles hoje mora na Pennsylvania e escreve para o The Guardian, entre outros jornais e revistas.
Tradutor: Daniel Peterson
Esse texto é uma tradução do ensaio originalmente escrito por Charles Eisenstein em 20 de setembro de 2021.
O texto original, em inglês, pode ser conferido em:
Notas
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Estou bem ciente das críticas de Tom Cowan, Andy Kaufman e Stefan Lanka à teoria dos germes virais. Embora eu ache que eles levantem algumas questões sem respostas que são importantes, pelo que vi, o principal impulso dos seus argumentos é baseado em um mal-entendido de como funciona o sequenciamento de genes virais. Aqui, só quero assegurar ao leitor que não ignoro suas críticas. ↩
-
Na verdade, a meu ver, há falhas sérias no paradigma padrão da teoria dos germes, que foca nos patógenos como a principal causa de doenças infecciosas. Embora essa lente ofereça alguns insights, ela deixa questões cruciais nas sombras, como coevolução entre germe e hospedeiro, simbiose, transferência benéfica de genes, e os benefícios do desafio imunológico. Particularmente negligenciada é a teoria do terreno, que analisa as condições corporais sob as quais a doença floresce, e que o paradigma padrão reduz a uma questão simplista de uma pessoa ter ou não ter imunidade ou um sistema imunológico forte. ↩
-
Junto com as sequências de comentários, que contêm histórias semelhantes de eventos adversos não reconhecidos pelos médicos. Alguns canais do Instagram, desde que removidos, continham centenas ou milhares dessas histórias. Pode-se convenientemente descartá-los como o trabalho de “antivacinas histéricos”, mas, novamente, alguém pode realmente saber com certeza? ↩
-
O princípio central da religião da ciência é a humildade; assim, sua expressão institucional é a arrogância. ↩