Cabeça Livre

A moralidade da manada e os não-vacinados

(Parte 3 da série do historiador Rene Girard. Parte 1, Parte 2)

Gostaríamos de pensar que sociedades modernas como a nossa superaram costumes bárbaros como o sacrifício humano. Claro, ainda nos envolvemos em usar bodes expiatórios e figurativamente sacrificar pessoas no altar da opinião pública, mas não matamos realmente pessoas na esperança de aplacar os deuses e restaurar a ordem. Ou matamos?

Alguns estudiosos acreditam que sim. Seguindo o pensamento do falecido historiador e filósofo Rene Girard, eles argumentam que o sacrifício humano ainda está conosco hoje na forma da pena de morte (e do encarceramento – uma remoção da sociedade). Girard acreditava que o sacrifício humano surgiu em resposta ao que ele chamou de “crise sacrificial”. A crise sacrificial original – a maior ameaça às sociedades primitivas – eram ciclos sucessivos de violência e retribuição. A solução foi redirecionar a vingança para longe uns dos outros e, em violenta unanimidade, para um bode expiatório ou uma classe de bodes expiatórios. Uma vez estabelecido, esse padrão foi memorializado em mitos e rituais, aplicado preventivamente ao sacrifício humano, e executado em resposta a qualquer outra crise que ameaçasse a sociedade.

Nessa visão, a pena de morte originou-se no sacrifício humano e é um sacrifício humano. Desempenha a mesma função: prevenir a violência recíproca por meio da violência unânime. Ela faz isso monopolizando a vingança, truncando o ciclo de violência retaliatória na primeira iteração. Isso funciona quer o sujeito da execução ou do encarceramento seja culpado de um crime ou não. Justiça é uma capa que encobre algo mais primitivo. O teólogo Brian K. Smith escreve:

O sujeito de uma execução moderna também pode carregar significados multivalentes. Entre outras coisas (como metonímicas potencialmente raciais e econômicas), tal figura pode servir como representante de todo o crime, da “desordem” e do “caos” social, da “quebra de valores”, etc. À parte de qualquer efeito dissuasivo utilitário que a pena de morte possa ter, é uma resposta bastante drástica a um problema social – violência ilícita e ilegal.

Em outras palavras, o que racionalizamos na linguagem da justiça e da dissuasão é, na verdade, um ritual de sangue, no qual uma pessoa, culpada ou não, se torna um símbolo. O ritual brota irreprimivelmente em torno das execuções: a última refeição, o “homem morto caminhando” para a câmara especial de execução, as testemunhas, os procedimentos médicos, o médico presidente, os papéis assinados, os últimos ritos, a cobertura da cabeça, o preciso cronograma, as últimas palavras e a atenção exigente aos detalhes, tudo isso marca a execução como separada, especial… sagrada.

Algo precisa ser feito

Em um artigo argumentado com lucidez, a jurista Roberta Harding oferece vários exemplos do Sul profundo da Era Jim Crow onde juiz, júri e promotor sabiam muito bem que o homem negro era inocente da acusação de estuprar uma mulher branca. Porém, porque a ordem social da supremacia branca se sentia ameaçada por relações consensuais entre raças, eles executaram o acusado de qualquer maneira; se não o fizessem, prontamente ele seria linchado. Em parte, isso era para dar o exemplo e aterrorizar a população negra, mas em parte era porque algo precisava ser feito.

Da mesma forma, pouco importava que os aldeões afegãos ou os políticos iraquianos não tivessem culpa pelo 11 de setembro; tampouco importava que bombardeá-los não teria nenhum efeito prático sobre o terrorismo futuro (exceto para inflamá-lo ainda mais). Obviamente, os Estados Unidos estavam usando o 11 de setembro como pretexto para cumprir objetivos geopolíticos mais amplos. Mas só funcionou como um pretexto devido à ampla concordância pública de que “algo deve ser feito”. E, encenando o antigo padrão, sabiam o que fazer: encontrar algum alvo de violência unificadora que não possa retaliar efetivamente. Fiquei consternado em 2001 quando, no Encontro Quaker de todos os lugares, um dos Quakers disse: “Claro, uma resposta enérgica de algum tipo é necessária”. O que, eu me perguntei, “enérgica” significa? Significa bombardear alguém. Em outras palavras, devemos encontrar alguém a quem dirigir a violência. Ele também pode ter mencionado abordar as causas imperialistas do terrorismo, mas não era a elas que o “claro” se referia. Quase todo mundo instintivamente deu como certa a necessidade de encontrar vítimas para o sacrifício. Definitivamente iríamos bombardear alguém – a única questão era quem.

O ataque do 11 de setembro exemplifica o que Harding chama de incidente desencadeador, que “ressuscita dissensões, rivalidades, ciúmes e querelas dentro da comunidade”, levando a uma crise sacrificial. Um recente incidente desse tipo foi a morte de George Floyd. Os conflitos latentes que ela expôs vinham se agravando há tanto tempo que foi preciso pouca provocação para que eles explodissem em uma crise ativa. A resposta à morte de Floyd é uma ilustração clássica do poder calmante da unanimidade violenta, já que a condenação e a sentença de Derrick Chauvin contiveram temporariamente a agitação civil racializada que a morte desencadeou. Algo foi feito – mas apenas para conter a agitação, não para resolver o problema complexo e fortemente ramificado das mortes por policiais. E não abordou a origem dos problemas raciais da América mais do que matar Osama Bin Laden tornou a América protegida do terrorismo.

Não é qualquer vítima que servirá como objeto de sacrifício humano. As vítimas devem, como diz Harding, “estar dentro da, mas não ser da sociedade”. É por isso que, durante a Peste Negra, multidões vagavam sobre matar judeus por “envenenar os poços”. Toda a população judaica de Basel foi queimada viva, uma cena que se repetiu em toda a Europa Ocidental. No entanto, isso não foi principalmente o resultado de um virulento e preexistente ódio aos judeus à espera de uma desculpa para explodir; era que vítimas eram necessárias para liberar a tensão social, e o ódio, um instrumento dessa liberação, se aderiu oportunisticamente aos judeus. Eles se qualificavam como vítimas graças ao seu status de “dentro da, mas não da sociedade”.

“Combater o ódio” é combater um sintoma.

Os bodes expiatórios não precisam ser culpados, mas devem ser marginais, párias, hereges, violadores de tabus ou infiéis de um tipo ou de outro. Se forem muito estranhos, serão inadequados como objetos de transferência de agressão dentro do grupo. Nem podem ser plenos membros da sociedade, para que não ocorram ciclos de vingança. Se eles ainda não são marginais, devem ser tornados. Era ritualmente importante que Derrick Chauvin fosse considerado um racista e supremacista branco; então, sua remoção da sociedade poderia servir simbolicamente como a remoção do racismo em si.

Só para ficar claro aqui, não estou dizendo que a condenação de Derrick Chauvin pela morte de George Floyd foi injusta. Estou dizendo que justiça não foi a única coisa feita.

Representantes da poluição

Além dos criminosos, quem hoje serve como representante da “desordem”, do “caos social” e da “quebra de valores” de Smith que parecem estar tomando conta do mundo? Durante a maior parte da minha vida, inimigos externos e discursos de nação serviram para unificar a sociedade: o comunismo e a União Soviética, o terrorismo islâmico, a missão à lua e a mitologia do progresso. Hoje, a União Soviética está morta há muito tempo, o terrorismo deixou de aterrorizar, a lua é enfadonha e a mitologia do progresso está em declínio terminal. O conflito civil queima cada vez mais quente, sem o amplo consenso necessário para transformá-lo em violência unificadora. Para a direita, são os Antifa, os Black Lives Matter, os acadêmicos da Teoria Crítica e os imigrantes ilegais que representam o caos social e a quebra de valores. Para a esquerda, são os Proud Boys, milícias de direita, supremacistas brancos, QAnon, os invasores do Capitólio e a nova categoria emergente de “extremistas domésticos”. E, finalmente, desafiando a categorização esquerda-direita está uma nova classe promissora de bodes expiatórios, os hereges do nosso tempo: os antivaxxers (antivacinas). Como uma subpopulação prontamente identificável, eles são candidatos ideais para servir de bode expiatório.

Pouco importa se algum deles representa uma ameaça real para a sociedade. Tal como acontece com os sujeitos à justiça criminal, sua culpa é irrelevante para o projeto de restauração da ordem por meio do sacrifício de sangue (ou expulsão da comunidade por encarceramento ou, de forma mais morna, mas possivelmente prefigurativa, por meio do “cancelamento”). Basta que a classe desumanizada desperte a indignação cega e a raiva necessárias para incitar um paroxismo de violência unificadora. Mais relevante para os tempos atuais, essa energia primitiva das massas pode ser aproveitada para fins políticos fascistas. Totalitários de direita e esquerda a invocam diretamente quando falam de expurgos, limpeza étnica, pureza racial e traidores em nosso meio.

Sujeitos sacrificiais carregam uma associação de poluição ou contágio; sua remoção, portanto, limpa a sociedade. Conheço pessoas no campo da saúde alternativa que são consideradas tão impuras que, se eu sequer mencionar seus nomes em um tuíte ou uma postagem no Facebook, a postagem pode ser excluída. A exclusão é uma certeza se eu fizer um link para um artigo ou entrevista com eles. A pronta aceitação do público de tal censura flagrante não pode ser explicada apenas em termos de acreditar no pretexto de “controlar a desinformação”. Inconscientemente, o público reconhece e obedece ao antigo programa de investir uma subclasse pária com a simbologia da poluição.

Esse programa está bem encaminhado em direção aos não vacinados contra a Covid, que estão sendo retratados como fossas de germes ambulantes que podem contaminar os Irmãos Santificados (os vacinados). Minha esposa estava passando as publicações de uma página de acupuntura no Facebook hoje (que seria de se esperar que fosse cética em relação à medicina convencional), quando viu alguém perguntando: “Qual é a palavra que vem à mente para descrever pessoas não vacinadas?” As respostas eram coisas como “imundície”, “idiotas” e “comensais da morte”. Esta é precisamente a desumanização necessária para preparar uma classe de pessoas para a limpeza.

A ciência por trás desse retrato é duvidosa. Ao contrário da associação entre os não vacinados e o perigo público, alguns especialistas afirmam que são os vacinados que têm maior probabilidade de desenvolver variantes mutantes por meio da pressão de seleção natural. Assim como os antibióticos resultam em taxas de mutação mais altas e evolução adaptativa nas bactérias, levando à resistência aos antibióticos, também as vacinas podem levar os vírus a sofrer mutação. (Daí o prospecto de infinitas “doses de reforço” contra infinitas novas variantes.) Esse fenômeno tem sido estudado há décadas, como descreve este artigo de 2018 no meu site favorito de matemática e ciências, o Quanta. As variantes mutadas escapam dos anticorpos induzidos pela vacina, em contraste com a imunidade robusta que, de acordo com alguns cientistas, aqueles que já estiveram doentes com Covid têm para todas as variantes (ver isto e isto, mais análise aqui, compare com o ponto de vista do Dr. Fauci.)

Mas não é meu propósito aqui apresentar um caso científico. Meu ponto é que aqueles nas comunidades científica e médica que discordam da demonização dos não vacinados lutam não apenas contra visões científicas opostas, mas contra antigas e poderosas forças psicossociais. Eles podem debater a ciência o quanto quiserem, mas estão lutando contra algo muito maior. Cientistas ruandeses poderiam muito bem ter debatido os preceitos do Poder Hutu por todo o bem que isso teria feito. Talvez o exemplo nazista seja mais apropriado aqui, uma vez que os nazistas invocaram a ciência em suas campanhas de extermínio. Então, como agora, a ciência era uma capa para encobrir algo mais primitivo. O furacão de violência sacrificial varreu facilmente a minoria de cientistas alemães que contestavam a ciência da eugenia, e não era porque os dissidentes estavam errados.

Enfrentamos situação semelhante hoje. Se a visão mais comum sobre as vacinas da Covid estiver errada, ela não será derrubada pela ciência apenas. O campo pró-vacina tem um poderoso aliado não-científico na identidade coletiva, expressa por meio de vários mecanismos de ostracismo, envergonhamento e outras pressões sociais e econômicas. É preciso coragem para desafiar uma manada. Médicos e cientistas que expressam pontos de vista antivacinas correm o risco de perder financiamento, empregos e licenças, assim como os cidadãos comuns enfrentam censura nas redes sociais. Mesmo um ensaio não polêmico como este provavelmente será censurado, especialmente se eu manchá-lo com a poluição dos hereges, trazendo links para sites ou artigos na lista negra dos Doze Desinformantes dos antivacinas. Aqui vamos nós, tentar por diversão: Greenmedinfo.com! Chldren’s Health Defense! Mercola.com! Ah… Isso pareceu um pouco como gritar palavrões em público. É melhor que você não abra esses links, para não se contaminar com sua poluição (e seu histórico de navegação te marcará como infiel).

Para preparar alguém para remoção como o repositório de tudo o que é mau, ajuda amontoar sobre ele todas as calúnias imagináveis. Assim, ouvimos em publicações convencionais que os antivacinas não apenas estão matando pessoas, como também são narcisistas raivosos, supremacistas brancos, vis, propagadores de desinformação russa e equivalentes a terroristas domésticos. Essas acusações são amplificadas escolhendo a dedo alguns exemplos, escolhendo fotos de aparência histérica de antivacinas e apresentando seus argumentos mais duvidosos. Se as autoridades seguirem o manual desenvolvido para combater outras “ameaças” domésticas, também podemos esperar agentes-provocadores, esquemas de aprisionamento, agentes do governo expressando posições violentas para desacreditar o movimento, e assim por diante – técnicas desenvolvidas na infiltração dos direitos civis, movimentos ambientais e antiglobalismo.

Amigos preocupados me aconselharam a “me distanciar” dos membros dos Doze Desinformantes que conheço, como se eles carregassem algum tipo de contágio. Bem, em certo sentido, eles carregam sim – o contágio do descrédito. Isso me lembra dos tempos soviéticos, quando a mera associação com um dissidente poderia levar alguém ao Gulag com ele. Também me lembra dos meus dias de escola, quando era suicídio social ser amigo de uma criança esquisita, cuja esquisitice passava para a própria pessoa. Na escola primária, esse contágio era conhecido como “piolhos”. (No início da minha adolescência, eu era o garoto estranho, e apenas adolescentes muito corajosos seriam amigáveis ​​comigo enquanto alguém estivesse vendo.) Claramente, a dinâmica social básica permeia a sociedade em muitos níveis. Um instinto profundamente enraizado reconhece o perigo de pertencer a uma subclasse de párias. Defender os párias ou deixar de mostrar entusiasmo suficiente para atacá-los marca uma pessoa como suspeita; o resultado é autocensura e discrição, contribuindo ainda mais para a ilusão de unanimidade.

Sequestrando a moralidade

O mesmo tipo de ciclo de reforço positivo é o que gera uma manada. Basta algumas pessoas barulhentas para incitá-la declarando alguém ou algo como alvo. Uma parte da multidão acompanha com entusiasmo. Os outros continuam calados e externam conformidade, mesmo quando estão incomodados por dentro; cada um desses tem a impressão que é a única pessoa que discorda. Escrito em grande escala para o estado totalitário, o apoio da maioria da população é desnecessário. A aparência de suporte será suficiente.

Os mecanismos que geram a ilusão de unanimidade operam na ciência, na medicina e no jornalismo, bem como no público em geral. Alguns se conformam com entusiasmo à ortodoxia; outros reclamam em sussurros para colegas simpáticos. Aqueles que expressam dissidência publicamente tornam-se radioativos. As consequências da sua apostasia (excomunhão do financiamento, ridicularização na mídia, evasão de colegas que devem “se distanciar”, etc.) servem para silenciar outros potenciais dissidentes, que prudentemente guardam seus pontos de vista para si mesmos.

Observe que até aqui eu ainda não disse o que eu pessoalmente penso sobre a segurança, a eficácia ou a necessidade da vacina (tenha paciência); no entanto, o que eu disse até aqui já é suficiente para qualquer um se distanciar de mim para se manter seguro. Se eu não sou um antivacina eu mesmo, certamente peguei os piolhos de um.

Um membro de um fórum online que eu co-organizo relatou um incidente. Seus filhos tinham um encontro marcado para brincar na casa de um amigo. Um pai ligou para ele para perguntar se sua família havia sido vacinada. Educadamente, ele disse que não, e seus filhos foram imediatamente desconvidados.

Quando as crianças de Barriga-Estrela saíram para jogar bola,
Será que uma Barriga-Plana poderia entrar no jogo…? De jeito nenhum.
Você só poderia jogar se sua barriga tivesse estrelas
E as crianças de Barriga-Plana não tinham nenhuma nas delas.

(Dr. Seuss)

Embora esse pai sem dúvida acreditasse que estava sendo científico ao cancelar o convite, duvido que ciência fosse realmente o motivo. Mesmo a pessoa mais ortodoxa da Covid entende que os filhos não sintomáticos de pais não sintomáticos representam um risco insignificante de infecção; além disso, uma vez que os crentes na vacina presumivelmente confiam que a vacina fornece proteção, falando racionalmente, eles têm pouco a temer dos não vacinados. O risco é infinitamente pequeno, mas a indignação moral é enorme.

Muitas, senão a maioria das pessoas, tomam a vacina com um espírito cívico altruísta, não porque pessoalmente temem pegar Covid, mas porque acreditam que estão contribuindo para a imunidade coletiva e protegendo outras pessoas. Por extensão, aqueles que recusam a vacina estão fugindo do seu dever cívico; daí os epítetos “imundície” e “idiotas”. Eles se tornam os representantes identificáveis ​​da decadência social, prontos para a remoção cirúrgica do corpo político, como se fossem células cancerígenas, todas convenientemente localizadas no mesmo tumor.

A estabilidade social depende de as pessoas recompensarem o altruísmo e impedirem o comportamento anti-social. Essas recompensas e impedimentos são codificados na moral e, em seguida, em normas e tabus. Cumprindo os rituais e evitando os tabus da tribo, e envergonhando e punindo os que não o fazem, a pessoa dorme tranquila pensando ser uma boa pessoa. Como benefício adicional, a pessoa se distingue como parte da maioria moral, um membro pleno da sociedade, e não parte da minoria sacrificial. Nosso medo da não-conformidade nasce de uma experiência antiga, tão profundamente enraizada que se tornou um instinto. É difícil distingui-lo da moralidade.

O medo que opera no ostracismo dos não vacinados é principalmente não o medo da doença, embora a doença possa ser o que o conduz. O medo principal, antigo como a humanidade, é o do contágio social. É o medo de se associar aos marginalizados, codificado como indignação moral.

Em qualquer sociedade, algumas pessoas são especialmente zelosas em fazer cumprir as normas, valores, rituais e tabus do grupo. Elas podem ser tipos controladores, ou podem simplesmente se preocupar com o bem comum. Elas desempenham um papel importante quando as normas e rituais estão alinhados com a saúde social e ecológica. Mas quando forças corruptas sequestram as normas por meio da propaganda e do controle da informação, essas pessoas boas podem se tornar instrumentos do controle totalitário.

Aqueles que fazem o bode expiatório podem honestamente, até mesmo com fervor, acreditar na narrativa de que “os não vacinados colocam outras pessoas em perigo”. Novamente, embora eu ache as evidências em contrário convincentes, não vou tentar elaborar um caso para além das dicas que já ofereci. Como diz o ditado, você não pode fazer uma pessoa raciocinar de uma posição na qual ela não entrou por raciocínio próprio, pra começo de conversa. Além disso, a maioria das citações que eu usaria viria de fontes da lista negra, que, devido à sua heresia, são inaceitáveis ​​para aqueles que confiam em fontes oficiais de informação. Se você confia nas fontes oficiais, ora, então você confia na sua exclusão das informações heréticas. Quando as fontes oficiais excluem todos os dissidentes, então todos os dissidentes tornam-se a priori inválidos para aqueles que confiam nelas.

Consequentemente, grande parte da dissidência migra para duvidosos sites de direita, sem os recursos para checar fatos e escrutinar as fontes. Alguém poderia pensar, por exemplo, que um cientista altamente credenciado como o Dr. Peter McCullough, professor de Medicina, autor de centenas de artigos científicos revisados ​​por pares, e presidente da Cardio-Renal Society of America, seria capaz de encontrar uma audiência fora do ecossistema de mídia de direita. Mas não. Ele foi marginalizado para lugares como o destro e católico The John-Henry Westen Show. Eu gostaria de poder encontrar um link para esta convincente entrevista em outro lugar, especialmente porque não há nada de direita na visão do Dr. McCullough.

Tragicamente, os sites que hospedam pessoas como McCullough são muitas vezes o lar de artigos anti-imigrantes e anti-LGBTQ que usam as mesmas táticas aplicadas aos antivacinas, usam o mesmo modelo de desumanização e bode expiatório e se prestam aos mesmos fins fascistas.

Movendo as massas

Por essas razões, não vou tentar fazer muito esforço para sustentar minha crença de que – e posso muito bem dizer isso explicitamente como um gesto de boa vontade para com os censores, que terão, assim, mais facilidade para decidir o que fazer com este artigo – as vacinas contra a Covid são muito mais perigosas, menos eficazes e menos necessárias do que nos dizem. Elas também não parecem tão perigosas, pelo menos no curto prazo, como alguns temem. As pessoas não estão caindo mortas nas ruas ou se transformando em zumbis; a maioria dos meus amigos vacinados parece estar bem. Portanto, é difícil saber. A ciência sobre o assunto está tão nublada por incentivos financeiros e vieses sistêmicos que é impossível contar com ela para iluminar o caminho na escuridão. O sistema de pesquisa e saúde pública suprime medicamentos genéricos e terapias nutricionais que demonstraram reduzir significativamente os sintomas e a mortalidade da Covid, deixando as vacinas como a única opção. Também não consegue investigar de forma adequada vários mecanismos plausíveis para danos graves a longo prazo. Claro, plausível não significa certo: neste momento ninguém sabe, ou mesmo pode saber, quais serão os efeitos de longo prazo. Meu ponto, entretanto, não é que os antivacinas estejam certos e sendo perseguidos injustamente. É que sua perseguição encena um padrão que pouco tem a ver com o fato de eles estarem certos ou errados, serem inocentes ou culpados. A falta de confiabilidade da ciência ressalta esse ponto, e sugere que examinemos com atenção os impulsos sociais mortais que a ciência encobre.

Dizer que as fontes oficiais excluem todos os dissidentes é um exagero. Na verdade, publicações revisadas por pares e médicos e cientistas altamente credenciados concordam com muito do que eu disse. Claro, eles estão em minoria. Mas se eles estiverem certos, não saberemos facilmente. Os mecanismos para controlar desinformação funcionam igualmente bem para controlar informações verdadeiras que contradizem as fontes oficiais.

A análise anterior não pretende invalidar outras explicações para a conformidade relacionada à Covid: a influência das grandes indústrias farmacêuticas na pesquisa, na mídia e no governo; paradigmas médicos reinantes que veem a saúde como uma questão de vencer uma guerra contra germes; um clima social geral de medo, obsessão com segurança, fobia e negação da morte; e, talvez o mais importante, o longo desempoderamento dos indivíduos para gerenciar sua própria saúde.

Nem a análise anterior é incompatível com a teoria de que a Covid e a agenda de vacinação é uma conspiração totalitária para vigiar, rastrear, injetar e controlar cada ser humano na Terra. Talvez haja pouca dúvida de que algum tipo de programa totalitário está bem encaminhado, mas há muito tempo acredito que seja um fenômeno emergente que aglomera sincronicidades para cumprir o mito e a ideologia ocultos da Separação, e não uma conspiração premeditada entre conspiradores humanos. Agora eu acredito que ambos são verdadeiros; a última subsidiária da primeira, seu avatar, seu sintoma, sua expressão. Embora não sejam a explicação mais profunda para o sofrimento atual da humanidade, as conspirações e as maquinações secretas de poder operam de fato, e cheguei a aceitar que algumas coisas sobre nosso momento histórico atual são melhor explicadas nesses termos.

Quer o programa totalitário seja premeditado ou oportunista, deliberado ou emergente, a questão permanece: como uma pequena elite move a grande massa da humanidade? Eles fazem isso agravando e explorando padrões psicossociais profundos, como o girardiano. Os fascistas sempre fizeram isso. Normalmente atribuímos pogroms e genocídio à ideologia racista, o exemplo clássico sendo o fascismo anti-semita. Do ponto de vista girardiano, é mais o contrário. A ideologia é secundária: uma criação e uma ferramenta de iminente unanimidade violenta. Ela cria suas condições necessárias. O mesmo pode ser dito da escravidão. Não era que os europeus pensassem que os africanos eram inferiores e, por isso, os escravizaram. O que ocorreu foi: pensar que eles eram inferiores era preciso a fim de escravizá-los.

Também em um nível individual, quem entre nós nunca agiu a partir de motivações sombrias do inconsciente, criando elaboradas justificativas para permitir e racionalizar post facto ações que prejudicam outras pessoas?

Por que o fascismo é tão comumente associado ao genocídio, quando como filosofia política trata da unidade, do nacionalismo e da fusão do poder corporativo e estatal? É porque ele precisa de uma força unificadora poderosa o suficiente para varrer para escanteio toda resistência. O nós do fascismo requer um eles. A maioria moral civilizada participa de boa vontade, assegurada de que é para o bem maior. Algo precisa ser feito. Os que duvidam também acompanham, para sua própria segurança. Não é de admirar que as instituições autoritárias de hoje saibam, como que instintivamente, instigar a histeria contra a recém-criada classe dos deploráveis, os antivacinas e os não vacinados.

O fascismo toca, explora e institucionaliza um instinto mais profundo. A prática de criar classes de pessoas desumanizadas e depois assassiná-las é mais antiga do que a história. Surge de novo e de novo em todos os sistemas políticos. O nosso não está isento. A campanha contra os não vacinados, vestida com o jaleco branco da Ciência, munida de dados tendenciosos, e balançando a bandeira do altruísmo, canaliza um impulso antigo e brutal.

Isso significa que os não vacinados serão presos em campos de concentração e seus líderes assassinados ritualmente? Não, eles serão segregados da sociedade de outras maneiras. Mais importante ainda, as energias invocadas pela campanha desumanizante de bodes expiatórios e de associação à poluição podem ser aplicadas para obter a aceitação pública de políticas coercitivas, particularmente políticas que se encaixem na narrativa de remover a poluição. Atualmente, passaportes de vacinação são exigidos para visitar alguns países. Imagine precisar de um para fazer compras, dirigir um carro, ou sair de casa. Seria facilmente aplicável em qualquer lugar que implementou a “Internet das Coisas”, na qual tudo, de automóveis a fechaduras de portas, está sob controle central. O pretexto mais frágil será suficiente uma vez que o antigo modelo da vítima sacrificial, o repositório da poluição, tenha sido estabelecido.

Rene Girard era, pelo que li da sua obra, um tanto fundamentalista. Não concordo com ele que todo desejo além do mero apetite seja mimético ou que todo ritual se origina da violência sacrificial, por mais poderosas que sejam essas lentes. Da mesma forma, não quero reduzir nossa atual aceleração em direção ao tecno-totalitarismo e a um estado de biossegurança a apenas uma explicação psicossocial, por mais profunda que seja. No entanto, é importante reconhecer o padrão girardiano, para que saibamos com o que estamos lidando, para que possamos criativamente expandir nossa resistência além do debate fútil sobre as questões – e mais importante, para que possamos identificar sua operação dentro de nós mesmos. Qualquer movimento que aproveite o desprezo em sua retórica se encaixa no impulso girardiano. Elementos de bode expiatório como desumanização, espalhamento de rumores, estereótipos, punição como justiça e mentalidade de manada estão vivos nas comunidades dissidentes assim como estão na comunidade formada pela maioria. Qualquer um que cavalgar esses poderes para a vitória criará uma nova tirania não melhor do que a anterior.

Existe outro caminho e um futuro melhor. Vou descrevê-lo na Parte 4 deste ensaio, embora o leitor já saiba qual é, pelo sentimento, se não em palavras. Este futuro alcança o presente e o passado para se mostrar a qualquer momento que a vingança dá lugar ao perdão, inimizade à reconciliação, culpa à compaixão, julgamento à compreensão, punição à justiça, rivalidade à sinergia, e suspeita à risada. A transcendência está no ser humano.

Autor: Charles Eisenstein

Charles Eisenstein é palestrante, ativista e escritor focado nos temas da civilização, consciência, dinheiro e evolução cultural. Formado em Matemática e Filosofia na Universidade de Yale em 1989. Autor dos livros Sacred Economics (Economia Sagrada), Ascent of Humanity (Ascensão da Humanidade) e The More Beautiful World Our Heart Know Is Possible (O Mundo Mais Bonito Que Nosso Coração Sabe Ser Possível). Charles hoje mora na Pennsylvania e escreve para o The Guardian, entre outros jornais e revistas.

Tradutor: Cabeça Livre

Esse texto é uma tradução do ensaio originalmente escrito por Charles Eisenstein em 02 de agosto de 2021.

O texto original, em inglês, pode ser conferido em:

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