Funcionários da SS (agência de segurança nazista), em Auschwitz, 1944, rindo ao som de um acordeão. Parecem pessoas normais como outras quaisquer, certo? O que as faria se envolver (ainda que indiretamente, no caso de algumas) no assassinato em massa de judeus? Imagem obtida do site do Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos (USHMM, na sigla em inglês).
No intenso romance da era soviética Vida e destino, Vasily Grossman revela a mentalidade que apoia o totalitarismo, não poupando nem o fascismo, nem o comunismo.
Como jornalista, Grossman esteve presente após o genocídio de judeus na Ucrânia pelos nazistas e seus colaboradores civis. Grossman descreve como os nazistas (encorajados pelos crimes de Stalin) tiveram primeiro que incitar sentimentos de ódio contra os judeus antes que os cidadãos seguissem as ordens.
Grossman define o cenário com uma descrição prática, fatual de como o gado contaminado é eliminado (os trechos a seguir podem ser encontrados no capítulo 50):
Antes de abater o gado contaminado, várias medidas preparatórias devem ser realizadas: covas e trincheiras devem ser cavadas; o gado deve ser transportado para o local de abate; as instruções devem ser emitidas para trabalhadores qualificados.
Se a população local ajuda as autoridades a transportar o gado contaminado para os pontos de abate e a capturar os animais que fugiram, não o fazem por ódio a vacas e bezerros, mas por instinto de autopreservação.
Anti-semitas não são necessariamente sanguinários, de modo que, para conquistar sua obediência, campanhas especiais moldaram a mentalidade da população em geral:
Da mesma forma, quando pessoas devem ser abatidas em massa, a população local não é imediatamente dominada por um ódio sanguinário pelos idosos, mulheres e crianças que devem ser destruídos. É preciso preparar a população por meio de uma campanha especial. E, nesse caso, não é suficiente confiar apenas no instinto de autopreservação; é necessário incitar sentimentos de verdadeiro ódio e repulsa.
Grossman explica como o uso anterior do ódio por Stalin ajudou os alemães:
Em uma data anterior, nas mesmas regiões, o próprio Stalin havia mobilizado a fúria das massas, levando-as ao frenesi durante as campanhas para exterminar a classe dos cúlaques e durante o extermínio dos degenerados agentes sabotadores trotskistas-bukharinistas.
O resultado de tais campanhas é que “a maioria da população obedece a todas as ordens das autoridades como se estivesse hipnotizada”. No entanto, é preciso mais. Em tal atmosfera totalitária, Grossman escreve:
Na massa da população, existe uma minoria em particular que ajuda ativamente a criar a atmosfera dessas campanhas: fanáticos ideológicos; pessoas que têm um prazer sanguinário com a desgraça alheia; e pessoas que querem acertar contas pessoais, roubar os pertences de alguém ou tomar seu apartamento ou trabalho. A maioria das pessoas, no entanto, fica horrorizada com o assassinato em massa […]
Uma das características humanas mais assombrosas que vieram à tona nesta época foi a obediência.
Uma mentalidade de obediência foi fomentada, superando outras virtudes humanas. Grossman nos pede para aprender com essa lição de história. Ele pondera: “um novo traço apareceu de repente na natureza humana?” E então ele responde à sua própria pergunta:
Não, essa obediência testemunha uma nova força atuando sobre os seres humanos. A extrema violência dos sistemas sociais totalitários provou ser capaz de paralisar o espírito humano em continentes inteiros.
Grossman explica como dividir as pessoas em “dignas” e “indignas” foi justificado pelo truque de redefinir o humanitarismo:
Um homem que colocou sua alma a serviço do fascismo declara que uma escravidão perversa e perigosa é o único bem verdadeiro. Em vez de renunciar abertamente aos sentimentos humanos, ele declara que os crimes cometidos pelo fascismo são a forma mais elevada de humanitarismo; ele concorda em dividir as pessoas em puros e dignos e impuros e indignos.
Grossman, cujo romance foi finalmente publicado em 1980 depois que uma cópia microfilmada foi contrabandeada da União Soviética, acertadamente avisa que o futuro da liberdade depende de nossas escolhas individuais:
A natureza humana passa por uma verdadeira mudança no caldeirão da violência totalitária? O homem perde sua inerente aspiração à liberdade? O destino tanto do homem quanto do Estado totalitário depende da resposta a essa pergunta. Se a natureza humana de fato muda, então o triunfo eterno e mundial do Estado ditatorial está assegurado; se seu anseio por liberdade permanece constante, então o Estado totalitário está condenado.
Poucos anos depois de Grossman observar as consequências do massacre de Babi Yar, outra jornalista/romancista/filósofa, a canadense-americana Isabel Paterson, apresentou suas observações sobre a natureza humana e a liberdade em seu livro O Deus da Máquina.
Nota do Cabeça Livre:
Isabel Paterson (1886-1961) foi jornalista, autora, filósofa política e uma importante crítica literária de sua época. Ela é considerada uma das três mães fundadoras do libertarianismo norte-americano, junto com Rose Wilder Lane e Ayn Rand.
O livro original em inglês, The God of the Machine, pode ser baixado gratuitamente do site do Instituto Mises.
Existe uma tradução para o português, feita por Marcelo Centenaro. O link para download no site dele está quebrado, mas é fácil encontrar o mesmo livro para download em outros sites.
Paterson escreveu (você pode encontrar as citações a seguir no capítulo XX):
A maior parte dos males do mundo é causada por boas pessoas, e não por acidente, lapso ou omissão. É o resultado de suas ações deliberadas, feitas com longa perseverança, que essas pessoas acreditam ser motivadas por altos ideais almejando fins virtuosos. Pode-se provar que isso é verdade; não poderia ser diferente. A porcentagem de pessoas positivamente mal-intencionadas, viciosas ou depravadas é necessariamente pequena, porque nenhuma espécie poderia sobreviver se seus membros fossem habitual e conscientemente predispostos a prejudicar uns aos outros.
Assim como Grossman, Paterson também observou como “pessoas boas” aquiesceram e até possibilitaram o massacre de milhões por um “objetivo digno”:
Portanto, é óbvio que, em períodos em que milhões são massacrados, pratica-se a tortura, impõe-se a fome e a opressão se torna uma política, como ocorre hoje em grande parte do mundo, e como ocorreu com frequência no passado, isso deve ser por ordem de muitas e muitas pessoas boas, e mesmo por sua ação direta, pelo que elas consideram que seja um objetivo digno.
Paterson nos lembra que os “bons” facilitadores demandam censura para que possam ficar confortáveis em sua mentalidade errada:
Quando não são os executantes imediatos, são culpados de aprovar, de criar justificativas ou ainda de esconder fatos com o silêncio e com discussões desconcertantes.
Em seguida, Paterson nos pede para refletir sobre o “grave erro” cometido por pessoas boas “que não agiriam por sua própria intenção consciente com o objetivo de ferir seus semelhantes”:
Então, deve haver um erro muito grave nos meios pelos quais elas buscam alcançar seus fins. Deve haver mesmo um erro em seus axiomas primários, que permitem que elas continuem usando tais meios. Alguma coisa está terrivelmente errada no método, em algum lugar. O que é?
O grave erro que Paterson aponta começa com a crença de que um indivíduo pode ter como objetivo primário “fazer o bem aos outros”, por meio de controlar os recursos dos outros. Uma vez que essa falsa crença esteja enraizada, o único meio possível “é o poder da coletividade. A premissa é de que o ‘bem’ é coletivo.”
Tiranos não podem chegar ao poder, exceto, escreve Paterson, “com o consentimento e o auxílio de pessoas boas”:
O regime comunista na Rússia ganhou o controle prometendo terra aos camponeses, em termos que os que prometeram sabiam que eram mentirosos. Tendo conquistado o poder, os comunistas tiraram dos camponeses a terra que eles já possuíam; e exterminaram aqueles que resistiram. Isso foi feito de maneira planejada e deliberada; e a mentira foi elogiada como “engenharia social” por admiradores socialistas na América.
Sobre Stalin, Paterson escreve:
Com tudo isso completamente demonstrado, temos o peculiar espetáculo do homem que condenou milhões do seu próprio povo à fome, admirado por filantropos cujo objetivo declarado é garantir que todas as pessoas do mundo tenham um litro de leite.
Grossman nos pede que olhemos para os fins moldados pelos totalitários para erodir a liberdade e justificar a violência. Ele explicou que tanto o fascismo quanto o comunismo “chamam as pessoas a fazerem qualquer sacrifício, a aceitarem todos os meios, a fim de alcançar os fins mais elevados: a futura grandeza da pátria, o progresso mundial, a futura felicidade da humanidade, de uma nação, de uma classe.”
O resultado:
A violência de um Estado totalitário é tão grande que não é mais um meio para um fim; se torna um objeto de êxtase e adoração mística.
Quando um Estado totalitário exige “adoração”, nós entendemos porque os totalitários precisam controlar a narrativa. Sabemos que a Covidocracia exige submissão ao seu melhor caminho, primeiro lockdowns e agora vacinas. Os dissidentes devem ser silenciados. O governo afirma que precisa manter listas de propagadores de “desinformação” e então fazer parceria com o Facebook para garantir que apenas narrativas “corretas” estejam disponíveis. Embaixadores da saúde devem ser enviados de porta em porta para compartilhar a boa palavra sobre as vacinas.
Quem discorda deve ser demonizado, o impuro separado da sociedade se não aceitar a vacina. Aqueles que fazem escolhas diferentes das nossas, condenamos mentalmente e nos sentimos no direito de proclamar que ameaçam outras pessoas. Embora os lockdowns tenham terminado, como Ethan Yang escreve, a guerra intelectual contra eles não foi vencida.
Ludwig von Mises em seu livro Governo Onipotente: A Ascenção do Estado Total e da Guerra Total, de 1944, escreveu: “É da natureza dos homens que gerenciam o aparato de compulsão e coerção superestimar seu poder para trabalhar, e se esforçar para subjugar todas as esferas da vida humana à sua influência imediata.” Controlar os outros por meio do poder do Estado “é a doença ocupacional de governantes, guerreiros e funcionários públicos”.
Em outras palavras, os políticos, seus camaradas corporativos e o Estado administrativo sem rosto usarão seu poder de monopólio da força para fins destrutivos. Se o totalitarismo vier para a América, terá seu próprio sabor, mas, como Grossman e Paterson alertam, a tirania precisa ter cidadãos que a permitam. Durante a pandemia, muitas pessoas boas tiveram dificuldade em interpretar os eventos desta época à luz dessa lição básica de história.
Se a liberdade está sitiada na América, seria sábio acelerar nosso ritmo intelectual para lidar com a mentalidade iliberal emergente que molda os cidadãos para possibilitar um sistema social totalitário. Forças estão agindo para paralisar o espírito humano. Não devemos mais nos enganar. Sem o consentimento e o auxílio de pessoas boas, totalitários não têm poder. Os governos, advertiu Mises, “se tornam liberais apenas quando forçados pelos cidadãos”.
Nota do Cabeça Livre:
O psicólogo clínico e professor universitário canadense Jordan Peterson nos lembra em seu livro 12 Regras para a Vida: Um antídoto para o caos que Hitler e Stalin também tiveram mães. Também eram Homo sapiens, que nem eu que escrevo e você que lê. “Cada ser humano tem uma capacidade imensa para o mal.” Cada ser humano pode vir a “agir como um guarda da prisão nazista, um administrador do arquipélago gulag ou um torturador de crianças em algum porão”. Muitas pessoas hoje se perguntam como a Alemanha chegou ao nazismo: como não perceberam o mal que estavam fazendo aos judeus e à humanidade, como um todo?
Talvez pensassem que todos os perpetradores terríveis da história fossem pessoas totalmente diferentes deles. Talvez nunca tenham conseguido ver dentro deles mesmos a capacidade para a opressão e o bullying (e talvez, também, não tenham visto sua capacidade para asserção e sucesso).
Antes de Peterson, a filósofa política alemã, mas de origem judaica, e professora universitária Hannah Arendt já havia chegado a conclusão parecida em 1961, enquanto cobria jornalisticamente os julgamentos de ex-oficiais nazistas. Ela os percebia como sujeitos normais, dos quais não se podia “extrair profundidade diabólica ou demoníaca”. Eles apenas cumpriam e executavam ordens advindas de uma burocracia com hierarquias rigidamente estabelecidas. Dessa observação, ela criou o conceito de banalidade do mal, que é quando todos obedecem sem questionar, abrindo mão de uma das características que difere o ser humano dos demais animais, que é a consciência e a reflexão sobre seus próprios atos.
O vídeo a seguir traz um trecho do filme Hannah Arendt, o qual recomendo assistir. Caso você não tenha tempo de ver o filme todo, esse trecho é, provavelmente, o principal do filme (para quem não gosta de spoilers, devo advertir que esse trecho é próximo do final do filme):
Nota do Cabeça Livre:
Fazendo um paralelo disso tudo com o que estamos vivendo nesses tempos no Brasil… em março desse ano, uma festa de aniversário foi encerrada pela Polícia Militar em São José (SC). A polícia foi chamada por vizinhos que denunciaram a “aglomeração”, proibida por decreto do governo estadual relacionado à Covid-19. O resultado: pessoas feridas com balas de borracha, dentre elas a organizadora da festa, que precisou de atendimento hospitalar, e 3 mulheres detidas, dentre elas uma adolescente. Um fim trágico imposto a uma simples festa de aniversário.
Festas de aniversário são celebradas desde que o mundo é mundo, não obstante a existência de doenças mais contagiosas e até mesmo mais letais que a Covid-19. Então, o que mudou? Vizinhos e policiais passaram a odiar quem faz festas de aniversário do dia pra noite?
Não é difícil entender a reprovação dos vizinhos à festa quando se vê a propaganda terrorista à qual foram submetidos. Exemplos incluem as campanhas do governo do Paraná e do governo da Bahia, que pintam pessoas que não obedecem ou vão a festas como assassinos (perceba aqui a ideia dos “indignos” ou “impuros”). Sem contar a orientação para cooperar com o estado denunciando “aglomerações” ou “festas clandestinas” (denunciar o próprio vizinho pode ser entendido como algo “digno”, necessário para o “bem comum”). Esses são só alguns exemplos, mas propagandas parecidas foram veiculadas em todo o país.
Quanto aos policiais, estavam apenas “obedecendo ordens” que receberam para acabar com a “aglomeração”.
Percebe as semelhanças?
Parece que a maioria das pessoas não questiona essa ideia absurda — à beira do ridículo — de que festas de aniversário são um risco para a humanidade. Eis a banalização do mal. Todo mundo coopera, todo mundo obedece. E coisas trágicas como a reportada acontecem.
Barry Brownstein chama isso de “Covidocracia”. Eu já vi outro nome que considero mais apropriado: coronazismo.
O vírus existe, a doença é real, para algumas pessoas ela pode ser realmente grave, mas a crise é fabricada, como tantas outras crises já fabricadas pelos governos para aumentar seu poder sobre a população.
Muitas pessoas morreram com essa doença, é verdade, mas quantas delas não poderiam ter sido salvas se remédios como a cloroquina ou a ivermectina não tivessem sido censurados em favor das vacinas, agora anunciadas como a única solução possível? Quantos acidentes de trânsito e suicídios não teriam sido evitados se os governos, em vez de imporem medidas que hoje sabemos ser ineficazes, deixassem as pessoas livres para medirem seus próprios riscos e tomarem suas próprias decisões? Como fez, aliás, a Suécia, que tem sido exitosa.
Parodiando Isabel Paterson, temos o peculiar espetáculo das pessoas “boas” que tanto repetem o lema “vidas importam” apoiando medidas governamentais que acabam por causar, na verdade, mais mortes.
Quantas mais pessoas terão que morrer para que as pessoas percebam que algo muito errado e grave — ao meu ver, bem mais grave que a doença — está acontecendo?
Perceba que até aqui só falei de saúde, mas olhando para a economia, lockdowns também aumentaram o desemprego, a desigualdade social e a inflação. “Economia a gente vê depois”, lembra? Pois bem, o “depois” chegou. E já está cobrando seu preço.
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Autor: Barry Brownstein
Barry Brownstein é professor emérito de Economia e Liderança na Universidade de Baltimore.
Ele é colaborador sênior da Intellectual Takeout e autor do livro The Inner-Work of Leadership.
Tradutor: Cabeça Livre
Esse texto é uma tradução da matéria originalmente escrita por Barry Brownstein em 21 de julho de 2021 para o American Institute for Economic Research (AIER, “Instituto Norte-americano de Pesquisa Econômica”).
O texto original, em inglês, publicado sob a licença CC BY 4.0, pode ser conferido em: